A Profissionalização da Figura do Laranja nas Sociedades Empresariais e Suas Consequências Jurídicas.

17/04/2024 às 17:56
Leia nesta página:

Eu tenho certeza que você, caro leitor, já ouviu falar da figura o laranja no mundo jurídico. Aquela pessoa popularmente conhecida como “testa de ferro” que fornece seus dados pessoais, seja mediante a intermediação de empregador ou até mesmo sem qualquer vínculo com o interlocutor, com o único objetivo de burlar e ocultar atividades financeiras, mascarando a origem do dinheiro e bens de terceiros.

A origem do termo “laranja” não é efetivamente conhecida. Há vários relatos de que surgiu em decorrência das atividades dentro dos muros de presídios nos idos de 1970. Há quem afirme que o termo tem origem do resto deixado pela laranja, o “bagaço”, sendo este o único “bem” a ser localizado pelos credores. Ou ainda, na década de 1930, em decorrência da lei seca, utilizavam bebidas alcoólicas injetadas em laranjas para burlar a fiscalização governamental. Enfim, não há um evento determinante e específico que se possa indicar como fidedigna e incontestável a origem do termo “laranja”.

Quem atua no meio jurídico, não raras vezes, se depara com terceiro estranho à relação jurídica, como sócio administrador de sociedades empresariais, sócio fantasioso esse que jamais operou diretamente as atividades da empresa, com nenhum ou quase nenhum patrimônio e, ironicamente, quando se faz o levantamento de dados em juntas comerciais, consta como sócio administrador de outras sociedades empresariais, sem qualquer vínculo, seja societário, patrimonial ou relacional.

Não é novidade que a figura do laranja vem sendo combatida, especialmente no meio fiscal, mas tem com um enorme caminho tortuoso para sua comprovação. Sim, não basta afirmar ou se assegurar na existência de indícios, há a necessidade de cristalização da prática de auto responsabilização de gerenciamento de sociedades como pura manobra de inviabilizar o recebimento de créditos pelos credores. Por outro lado, o sócio oculto, figura emblemática nas tramas da ocultação patrimonial, caracteriza-se pelo exercício do controle ou significativa influência em uma sociedade empresarial, sem que seu nome figure nos registros societários. Esta situação engendra significativas dificuldades na apuração de responsabilidades e na efetivação de direitos creditórios.

Não é surpresa. Nas relações do dia a dia, especialmente nas conversas informais, se observa a naturalização do “fenômeno” da profissionalização do “laranja”. Há um comércio informal da venda de dados pessoais com fito de inserir na figura de sócio pessoa absolutamente estranha à atividade societária como fenômeno de relações interpessoais. A verdadeira sociedade de pessoas passou a ser comercializada como uma suposta blindagem patrimonial sem fundo de responsabilidade. Afinal, o que irá ser encontrado de bens e valores de uma pessoa que não faz parte faticamente da vida da sociedade, não partilha rendas e ativos, não possui o capital de giro e que absolutamente alheia à “vida” da sociedade empresarial, em caso de demanda dos credores?! Nada. As figuras do sócio oculto e do sócio laranja, em particular, emergem como um desafio proeminente às práticas tradicionais de responsabilização e transparência empresarial.

Esse fenômeno de profissionalização do sócio laranja e da manutenção às cegas do sócio oculto nas relações empresariais contemporâneas, tem assolado o judiciário pela crescente complexidade e pela veloz mutabilidade das estruturas societárias, demandando uma incessante reavaliação dos instrumentos jurídicos disponíveis ao combate das fraudes como gênero.

Com uma busca que podemos considerar superficial ao gigantesco e vasto material encontrado, especialmente nas execuções fiscais, as Procuradorias fazendárias passaram a criar setores de inteligência com o objetivo principal de constituir provas contundentes na identificação e responsabilização de sócios ocultos, levantando o véu da verdadeira face do gerenciamento de sociedades devedoras de seus encargos fiscais que, por muitas vezes, se escondem na figura simplista do laranja, sendo este profissionalizado e ciente de sua condição, acredita na impossibilidade de responsabilidade patrimonial de suas escolhas “comerciais”.

Claro que as provas constituídas através desses setores de inteligência fiscais têm sua validade colocada em cheque por ser produzida de forma unilateral. Mas a verdade é que, quando submetida ao executivo fiscal, vem sendo utilizadas como meio indiciário de prova de prática fraudulenta, caracterizado por manifesta confusão patrimonial e desvio de finalidade, recaindo aos ombros dos sócios de fato e de direito arcar com o pagamento dos encargos fiscais, além da responsabilização penal, quando desencadeada a ação penal inerente.

Importante: não se despreza a prática do ilícito penal previsto no disposto do artigo 299 do Código Penal, mas as maiores implicações surgem entre as relações privadas e fiscais.

Aliás, muito se pensa de forma bem reduzida que a utilização dos personagens centrais deste artigo fica concentrada em sociedades de expressões societárias medianas ou pequenas. Ao revés, muitas vezes estamos diante de uma complexidade de estruturas empresariais, com formação de um grupo econômico, incluindo a existência de unicidade gerencial e atuação conjunta em ramos de atividades complementares, além do uso de mecanismos de blindagem patrimonial para de ocultação patrimonial e responsabilização social.

Mas o particular não detém das mesmas ferramentas de busca e constituição de provas que uma autoridade fiscal. O mundo se mostra muito mais cruel aos credores de títulos não tributários, esbarrando na burocratização judicial para constituição de mínimo probatório do efetivo devedor. O fisco tem uma proteção fiscal que permite o direcionamento sem instauração de incidente de responsabilização além de todo o aparato tecnológico que vem sendo investido vertiginosamente pelas administrações públicas, ao contrário do particular.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A frustração de um credor que, diante de um sócio personagem sem higidez e liquidez, é patente e corriqueira. Óbvio, hoje há disponibilização de diversas ferramentas à disposição do juiz que, com apenas um clique, daria efetividade aos milhares de processos de execução e cumprimentos de sentenças em que se busca a satisfação de crédito. Que fique claro, estamos sob uma premissa de responsabilização pessoal dos sócios, após deflagrada a figura do incidente de desconsideração. Não se pode atingir o sócio diretamente, quando se trata de débitos constituídos pela forma societária.

O advogado atuante, mas não tão profissionalizado no meio executivo, é penalizado com os mais diversos artifícios à disposição do devedor, às vistas de negativas de pedidos de acesso às ferramentas existentes, seja com as mais das diversas justificativas para não acolhimento, causando não apenas o impacto do descrédito da capacidade técnica do profissional, mas da própria eficiência e cerelidade de todo o sistema judicial.

Por exemplo, através do CCS-Bacen há a possibilidade de verificar quem é que efetivamente movimenta contas em instituições financeiras, uma vez que as procurações outorgadas ficam registradas em seus assentamentos.

Ora, o sócio fantasia/ laranja, como não há efetivamente o exercício das funções de gerenciamento por ele, muito comum ser outorgado poderes através de procurações aos sócios fáticos para a condução, movimentação e gerenciamentos das contas bancárias em instituições financeiras. 1 Outro exemplo é o COAF2.

A necessidade de aperfeiçoamento técnico deve ser permanente.

A falta de estatísticas oficiais detalhadas sobre a frequência e o impacto econômico da fraude contra credores e da utilização de sócios ocultos dificulta a quantificação precisa dessas práticas. Mas em estudos setoriais indicam que a fraude empresarial representa uma parcela significativa das perdas financeiras no mercado, afetando não apenas os credores diretos mas também minando a confiança no ambiente de negócios e desencorajando o investimento.

A verdade é que, cientes da burocratização e até mesmo dificuldade de acolhimento de pedidos mais enérgico para que se possa trilhar um caminho mais pedagógico do que punitivo, se tornou mais “lucrativo” ao sócio laranja se arriscar e permitir ser utilizado como um personagem descartável nesse jogo de ocultação.

O papel do sócio oculto, que opera nas sombras para evitar a detecção e a responsabilização, é particularmente problemático. Este personagem, ao manipular as operações empresariais sem aparecer formalmente nos registros, contribui significativamente para a perpetuação de práticas que prejudicam a economia e a sociedade como um todo. A responsabilização desses indivíduos, conforme discutida, exige não só uma legislação robusta, mas também um aparato judicial e fiscal capaz de penetrar na complexidade dessas estruturas empresariais.

Por outro lado, a profissionalização do "laranja" como uma figura comum e até aceita em certos círculos comerciais revela uma falha sistêmica na ética empresarial e na eficácia da regulamentação e fiscalização do mercado. Este cenário exige uma reavaliação dos métodos tradicionais de enforcement3 e uma adaptação às novas realidades do mercado, onde a tecnologia e as estratégias corporativas complexas podem auxiliar face as barreiras legais existentes.


  1. https://www.cnj.jus.br/sistemas/ccs-bacen/

  2. TRT-3 - APPS: 00103072220195030007 MG 0010307-22.2019.5.03.0007, Relator: Paula Oliveira Cantelli, Data de Julgamento: 09/02/2022, Quarta Turma, Data de Publicação: 10/02/2022.

  3. O termo se refere à aplicação, execução ou cumprimento de leis, regulamentos e regras.

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos