Desconstruindo a ideologia de gênero na legislação de guarda parental

Desafios e Perspectivas para a Igualdade de Gênero e o Bem-Estar das Crianças.

24/04/2024 às 17:24
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Resumo

O artigo aborda a relação entre as normas legais sobre guarda parental e os estereótipos de gênero, investigando suas implicações para a igualdade de gênero e o bem-estar infantil. A análise parte da introdução da Lei Nº 11.698, de 2008, que estabeleceu a guarda compartilhada como padrão, mas enfrenta desafios na prática devido a preconceitos arraigados. O texto discute como a interpretação da legislação reflete concepções tradicionais sobre os papéis de gênero na família, comumente resultando na concessão da guarda à mãe. Apesar da intenção de promover a igualdade parental, a aplicação da guarda compartilhada ainda é limitada, evidenciando a necessidade de reformas legais e mudanças culturais para garantir a equidade de gênero. O estudo propõe uma análise abrangente das leis e práticas relacionadas à guarda parental, identificando desafios, estereótipos de gênero e desigualdades. O artigo conclui com reflexões sobre a importância de desconstruir estereótipos de gênero na legislação, oferecendo sugestões para futuras pesquisas e ações no campo da igualdade de gênero e proteção dos direitos das crianças.

Introdução

A Lei Nº 11.698, promulgada em junho de 2008, representou um marco significativo no contexto da guarda parental no Brasil. Essa legislação alterou os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil, estabelecendo a guarda compartilhada como o sistema geral de custódia dos filhos menores de pais separados. No entanto, mesmo com essa importante mudança legislativa, persistem desafios significativos para alcançar a igualdade de gênero e o bem-estar das crianças.

A nova redação do artigo 1.584 do Código Civil enfatizou a importância da guarda compartilhada, permitindo que fosse requerida por consenso entre os pais ou, na ausência de acordo, decretada pelo juiz. Entretanto, a interpretação e aplicação dessa lei ainda enfrentam obstáculos, especialmente relacionados aos estereótipos de gênero arraigados na sociedade.

Antes da mudança na legislação, predominava a visão de que os filhos deveriam ficar sob a custódia daquele que tivesse "melhores condições" para exercê-la, o que muitas vezes resultava na concessão da guarda à mãe. Essa prática refletia uma concepção antiquada dos papéis de gênero na família, na qual as mães eram vistas como naturalmente mais aptas para cuidar dos filhos.

A introdução da guarda compartilhada visava superar esses estereótipos de gênero e promover a igualdade entre os pais na criação dos filhos. No entanto, na prática, a aplicação da lei tem sido limitada, com a maioria das disputas de guarda ainda resultando na "vitória" das mães. Isso levanta questões sobre a eficácia da legislação em garantir o direito das crianças a conviverem equitativamente com ambos os pais.

Apesar dos esforços para promover a guarda compartilhada como padrão, a persistência de preconceitos de gênero nas decisões judiciais evidencia a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre como reinterpretar e reformular as leis para garantir uma abordagem mais equitativa. O foco deve estar no melhor interesse da criança, priorizando o convívio saudável com ambos os pais, independentemente do gênero, e reconhecendo a importância fundamental do papel parental na vida dos filhos.

Os objetos de estudo neste projeto abrangem uma análise ampla e detalhada da legislação de guarda parental e seus impactos nos estereótipos de gênero e desigualdades. Isso inclui a investigação das normas legais vigentes em diversas jurisdições, com foco nas disposições, critérios e princípios orientadores que regem a atribuição da guarda dos filhos após a separação dos pais. O estudo também se dedica à identificação e análise dos estereótipos de gênero presentes tanto nas leis quanto nas práticas judiciais e sociais relacionadas à guarda parental, destacando como esses estereótipos podem influenciar a tomada de decisões sobre custódia. Além disso, busca-se examinar as desigualdades de gênero que podem surgir na aplicação das leis de guarda parental, investigando como os estereótipos de gênero afetam a distribuição de responsabilidades parentais e o acesso equitativo à custódia dos filhos. Outro aspecto importante do estudo é a análise dos impactos das políticas de guarda parental nas crianças e na dinâmica familiar, com foco no bem-estar emocional, social e psicológico das crianças, bem como no funcionamento das famílias após a separação dos pais. Com base nessas análises, o projeto busca oferecer propostas de reforma legislativa ou recomendações para reinterpretar as leis existentes, visando promover uma abordagem mais equitativa e inclusiva em relação à guarda parental, garantindo o melhor interesse das crianças e a igualdade de gênero. Além disso, visa aumentar a conscientização sobre as questões de guarda parental, estereótipos de gênero e desigualdades, tanto entre os profissionais do sistema judicial quanto na sociedade em geral, por meio da divulgação de resultados de pesquisa e promoção de discussões públicas sobre o tema. Em suma, os objetos de estudo deste projeto são abrangentes, visando fornecer uma análise aprofundada das leis e práticas relacionadas à guarda parental, identificar desafios e desigualdades, e propor soluções ou recomendações para promover uma abordagem mais justa e equitativa, alinhada com os direitos das crianças e os princípios de igualdade de gênero.

A estrutura do artigo segue uma abordagem organizada e progressiva, dividida em capítulos que exploram diferentes aspectos relacionados à legislação de guarda parental e seus reflexos nos estereótipos de gênero e desigualdades.

Legislação de Guarda Parental

Os romanos davam ao pater famílias o direito, inclusive, de matar o filho (Jus vitae et necis), estendendo-se esse direito no período da República, embora com alguma moderação, mas apenas no século II, sob a influência de Justiano, os poderes do chefe de família teriam sido limitados ao direito de correção dos atos da prole. Neste período prevalecia o pater familis, ou seja, o que significa dizer que o pai exercia um poder de chefia sobre a família e demais empregados, que seriam a ele subordinados. Possuía inclusive poder de venda sob o filho que poderia ser temporário, como uma espécie momentânea de suspensão do pátrio poder para suprir dificuldades financeiras, também venda para suprir prejuízos pelo pai causados. Ainda nesse contexto era permitido ao pai o abandono dos filhos, recém-nascidos portadores de deficiências.

Com o advento do cristianismo o poder familiar passou a ser um direito de característica protetiva, havendo uma evolução no Brasil, firmada na Constituição Federal Art. 226 e seguintes, e Art. 3º e 4º do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) com o preâmbulo da Convenção Internacional dos Direitos da criança, adotada pela Assembleia geral das Nações Unidas de 1989. Ainda sobre o posicionamento de Pontes de Miranda, pode-se destacar que o poder familiar passa, assim de um caráter de chefia, para um caráter mais protetivo. Direcionando aos genitores um conjunto de direitos e deveres para garantir a melhor formação dos filhos para a sociedade. Paralelamente a um enfoque constitucional para o melhor interesse dos filhos e não mais do “chefe” da sociedade familiar.

A origem do conceito está na necessidade dos filhos de uma maior proteção e cuidados e absoluta dependência com o nascimento que vai reduzindo gradativamente conforme seu crescimento.

O autor Waldyr Grisard Filho faz um breve relato, de posições de autores que conceituam o poder familiar dando uma autoridade maior ao pai, esclarecendo que essa é uma posição em desacordo com a sociedade. Conceitua ainda o poder familiar como um conjunto de faculdades encomendadas aos pais, com intuito de proteção e formação integral do filho. Conclui tendo por base no superior interesse do menor que o poder na verdade, constitui-se como um dever, uma responsabilidade, que se perpetua mesmo após o rompimento do vínculo conjugal.

A inclusão destes princípios e novos ideais no ordenamento jurídico brasileiro são resultados de uma constante evolução social, onde a família patriarcal, que desde o Brasil colônia até meados do século XX prevaleceu como modelo vigente, dando espaço a novas formas de família e mudanças na estrutura funcional dessa instituição. A família deixou de ser compreendida como um grupamento regido e fundado em interesses econômicos e passou a ser identificada por laços de afetividade e solidariedade também um caminho para concretização da realização pessoal do indivíduo.

O princípio do poder familiar originou-se devido a necessidade natural de proteção dos filhos pelos seus pais com absoluta dependência desde o nascimento que gradativamente vai diminuindo conforme seu crescimento, ocorrendo seu total desligamento com a emancipação, pelos pais, ou ainda pelo juiz, em caso de tutela, situação na qual se deve ouvir, em conformidade com o que dispõe o parágrafo único do art. 5° do Código Civil. E ainda quando se atinge a maioridade cronológica, de acordo com o Código Civil.

Pode se contextualizar o poder familiar como sendo um conjunto de direitos e deveres que deve ser exercido por ambos os genitores de maneira igualitária e simultânea, e unilateralmente somente no caso da falta de um deles, conforme dispõe o art. 1.690, 1ª parte do Código Civil Brasileiro. Desse modo, há de se observar prioritariamente a proteção dos filhos que é resultante de uma necessidade natural.

Sendo constituída a família com o nascimento dos filhos, não basta apenas garantir-lhes alimentação, é necessário educá-los, coordená-los desde a infância para que tenham seus interesses assegurados, sendo o afeto principal garantidor de um crescimento saudável. Além disso, deve-se destacar a questão social, criam-se cidadãos, pessoas que posteriormente irão atuar na sociedade e garantir que seu convívio seja cada vez mais harmônico, pacífico e, consequentemente, com menos conflitos. Significa dizer que é imprescindível que se forme indivíduos, desde os primeiros passos, com valores bem instituídos e consolidados. As pessoas naturalmente indicadas para esse exercício são os pais.

Conforme conceitua Maria Helena Diniz, o poder familiar:

“É o conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor na emancipado, exercido pelos pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhe impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. Tem por fim proteger o ser humano que, desde a infância, precisa de alguém que o crie, eduque, ampare, defenda, guarde e cuide de seus interesses, regendo sua pessoa e bens”.

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Ainda nesse sentido, podem-se citar as atribuições do princípio aos pais, conforme o art. 1.634 do Código Civil, que compreende:

"Ele deve dirigir a criação e a educação dos filhos, ter os filhos em sua companhia e guarda, conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem, nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar, representá-los, até os 16 anos, nos atos da vida civil e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento, reclamá-los de quem ilegalmente os detenha e exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição."

Observa-se que tais atribuições devem ser tidas como verdadeiros deveres legais dos pais em relação aos filhos. Assim, sua violação pode gerar a responsabilidade civil da autoridade parental por ato ilícito, nos termos dos requisitos constantes no art. 186 do Código Civil.

O Poder familiar é um conjunto de deveres, um instituto de caráter protetivo, imposto pelo Estado aos pais para que zelem pelo futuro de seus filhos. Instituído no interesse dos filhos e da família, em atenção ao princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CF), faz parte do estado das pessoas, não podendo ser alienado, renunciado, delegado ou substabelecido. Apesar disso, há uma exceção, elencada no Art. 166 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que preleciona sobre a possibilidade de colocar o menor em família substituta nos pedidos de adoção, onde é transferido ao adotante o poder familiar. Outra característica do conceito do poder familiar é ser imprescritível, ou seja, ainda que o genitor não o exercite, não é permitido perdê-lo, salvo por determinação legal ou judicial, conforme o art. 1.635 do Código Civil.

A partir do disposto, constata-se que o poder familiar não resulta do casamento ou da união estável, mas é inerente ao estado de filiação. Sua renúncia é ato nulo, podendo acarretar sanções – multa, imposta pelo Estado, tal como demonstra o art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sobre a função do poder familiar, Paulo Lôbo cita Massino Bianca:

“O poder familiar (potestà genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios funcionalizados aos cuidados e educação do menor, e ainda, os poderes de representação do filho e de gestão de seus interesses.”

O art. 1.632 do Código Civil elenca que, mesmo em casos de separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável, as relações entre pais e filhos permanecem inalteradas, senão quanto ao direito de guarda que seria manter em sua companhia os filhos, sendo este um direito de natureza e não de essência do poder familiar.

Ante ao exposto, é possível constatar que o poder familiar não é rompido após o vínculo conjugal. Ele perpetua-se, sendo extinto somente nos casos em que a lei expressamente determinar, independentemente do tipo de guarda atrelada ao caso.

No Brasil, a guarda dos filhos pode ser classificada em dois tipos principais: a guarda compartilhada e a guarda unilateral. Na guarda compartilhada, os pais tomam conjuntamente as decisões relacionadas ao bem-estar dos filhos, dividindo a responsabilidade de forma equilibrada. Já na guarda unilateral, apenas um dos pais possui o encargo de tomar todas as decisões importantes para o menor.

A essência da guarda compartilhada reside no compartilhamento da custódia física, proporcionando à criança uma convivência equilibrada com ambos os pais. Essa abordagem visa superar a unilateralidade na criação dos filhos, permitindo-lhes interagir com ambos os genitores e desenvolver uma compreensão mais completa da realidade.

Quanto à guarda unilateral, o STJ rejeita sua concessão a um dos genitores que utilize o litígio como estratégia para evitar a guarda compartilhada. Em casos de descumprimento substancial das cláusulas da guarda compartilhada por um dos pais, pode-se considerar uma redução significativa de suas prerrogativas, podendo levar à concessão da guarda unilateral ao outro genitor.

A jurisprudência do STJ reflete uma abordagem centrada no melhor interesse da criança e na igualdade parental. A guarda compartilhada é vista não apenas como um direito dos pais, mas como um direito fundamental das crianças, cuja implementação deve ser priorizada, exceto em situações excepcionais de inviabilidade.

Observa-se, portanto, uma falta de parâmetros pré-determinados na aplicação da lei, evidenciando que, em algumas decisões, o legislador parece ignorar o convívio conflituoso entre os genitores, enquanto em outras o considera como critério relevante.

Identificação de estereótipos de gênero presentes nessas leis

A identificação de estereótipos de gênero presentes nas leis relacionadas ao exercício do poder familiar nos tribunais revela desigualdades que afetam diretamente a igualdade de gênero e a justiça nas decisões judiciais. Esses estereótipos muitas vezes refletem concepções sociais antiquadas sobre os papéis de homens e mulheres na família, perpetuando desequilíbrios de poder e injustiças.

Um dos estereótipos mais comuns é a ideia de que as mulheres são naturalmente mais aptas para cuidar dos filhos, enquanto os homens são vistos como provedores financeiros. Isso se reflete em decisões judiciais que tendem a conceder a guarda dos filhos às mães em casos de separação ou divórcio, mesmo quando os pais estão igualmente capacitados para desempenhar essa função. Essa presunção baseada no gênero pode levar a situações injustas em que os pais são privados do contato significativo com seus filhos, enquanto as mães enfrentam uma carga desproporcional de responsabilidade parental.

Além disso, há estereótipos de gênero que afetam a percepção das habilidades parentais de homens e mulheres. Por exemplo, os tribunais podem presumir que as mulheres são naturalmente mais carinhosas e pacientes, enquanto os homens são vistos como menos capazes de cuidar dos filhos de forma adequada. Essa visão tendenciosa pode levar a decisões que subestimam o papel dos pais na vida dos filhos e perpetuam a ideia de que a responsabilidade parental é exclusivamente feminina.

Outro estereótipo de gênero presente nas leis relacionadas ao poder familiar é a ideia de que as mulheres são mais propensas a buscar a guarda dos filhos em casos de separação, enquanto os homens são vistos como menos interessados ou menos competentes para exercer esse papel. Essa suposição pode levar os tribunais a favorecerem automaticamente as mães em disputas pela guarda, sem considerar adequadamente os melhores interesses das crianças ou as capacidades parentais de ambos os genitores.

Esses estereótipos de gênero contribuem para a desigualdade de gênero no exercício do poder familiar nos tribunais, minando a igualdade de direitos e oportunidades para homens e mulheres. Para combater essa desigualdade, é crucial que as leis e as práticas judiciais sejam examinadas criticamente para identificar e eliminar preconceitos de gênero. Isso pode envolver a implementação de políticas que promovam a imparcialidade de gênero nas decisões judiciais, a sensibilização dos profissionais do direito sobre os estereótipos de gênero e a promoção de uma cultura jurídica que valorize a igualdade e a diversidade.

O conservadorismo arraigado, derivado de estruturas sociais permeadas pelo machismo, perpetua uma visão dicotômica dos papéis de gênero, mesmo em uma época em que se busca maior equidade. Contrariamente a essa tendência, a legislação vigente não faz distinção entre os deveres parentais baseados no gênero. A Constituição Federal estabelece, de forma fundamental, o princípio da igualdade entre os sexos (artigo 5º, I), especialmente no que tange à família, onde homens e mulheres possuem direitos e obrigações equiparados (artigo 226, § 5º), incluindo a criação e educação dos filhos (artigo 229).

Durante o casamento ou união estável, o Código Civil atribui aos dois genitores os deveres inerentes ao poder familiar, ainda que, na prática, apenas um dos cônjuges os exerça na ausência ou impedimento do outro (artigo 1.631). Independentemente da conjuntura conjugal, ambos têm o pleno exercício do poder familiar, com o direito de dirigir a criação e educação dos filhos (artigo 1.634, I), cabendo ao juiz resolver eventuais discordâncias (artigo 1.631). Após a dissolução do casamento ou união estável, as relações parentais permanecem intactas, bastando estabelecer o regime de convivência dos filhos com ambos os genitores (artigo 1.632).

Embora o texto legal utilize terminologia inadequada, a lei civil prevê tanto a guarda unilateral quanto a compartilhada (artigo 1.583), com preferência para esta última, mesmo em casos de desavença entre os genitores, desde que ambos estejam aptos a exercer o poder familiar (artigo 1.584, § 2º). Contudo, choca a permissão para que um dos pais, sem justificativa, abdique do convívio com o filho, resultando na atribuição da guarda unilateral ao outro (artigo 1.584, § 2º), ainda que mantenha o direito de solicitar informações sobre o bem-estar dos filhos (artigo 1.583, § 5º).

Ainda que a legislação preveja a responsabilidade conjunta dos pais sobre o poder familiar, a guarda unilateral só pode ser imposta judicialmente em casos em que a convivência com um dos genitores represente risco para a criança (artigo 1.637), podendo até levar à perda do poder familiar (artigo 1.638). No entanto, a lei prevê de forma incoerente que o tempo de convívio na guarda compartilhada deve ser equilibrado (artigo 1.583, § 2º), quando o mais adequado seria estabelecer períodos de convivência, mesmo de forma assistida, conforme o melhor interesse da criança.

Além disso, ao fixar uma base de moradia única para o filho (artigo 1.583, § 3º), a lei ignora a possibilidade de dupla residência e domicílio, o que é contrário à previsão legal de dupla residência para pessoas físicas (artigos 70 e 71). Assim, cabe ao juiz determinar os períodos de convivência, e o descumprimento sem motivo justificado pode acarretar a redução de prerrogativas parentais (artigo 1.584, § 4º).

Portanto, é incompatível com os princípios constitucionais e com o melhor interesse da criança a preferência pela guarda unilateral, o que contradiz o direito à convivência com ambos os pais e a prioridade absoluta que o Estado deve conferir às crianças e adolescentes.

A essência do poder familiar reside na proteção e cuidado dos filhos, que são completamente dependentes no nascimento, gradualmente reduzindo essa dependência conforme crescem. O poder familiar, portanto, é um conjunto de deveres protetivos impostos aos pais pelo Estado, visando garantir o bem-estar dos filhos e a harmonia familiar, em conformidade com o princípio da paternidade responsável. Ele não surge do casamento ou união estável, mas é inerente à relação de filiação, sendo irrenunciável e indelegável, exceto nos casos previstos em lei, como na adoção.

A identificação de estereótipos de gênero nas leis relacionadas ao poder familiar revela desigualdades que afetam a igualdade de gênero e a justiça nas decisões judiciais. A presunção de que as mulheres são naturalmente mais aptas para cuidar dos filhos e que os homens são apenas provedores financeiros leva a decisões que tendem a conceder a guarda aos pais de acordo com esses estereótipos, prejudicando a igualdade parental e os melhores interesses das crianças. É fundamental que as leis e práticas judiciais sejam examinadas criticamente para eliminar preconceitos de gênero e promover a igualdade e a diversidade na sociedade.

A monoparentalidade feminina tem experimentado um crescimento constante ao longo dos anos, estando intimamente ligada ao exercício do poder familiar. Em uma análise sistêmica, é pertinente destacar que a monoparentalidade não pode ser concebida como um modelo familiar legítimo, uma vez que, em sua maioria, resulta de imposições sobre o sexo feminino, seja de forma direta ou indireta. Diretamente, manifesta-se por meio de divórcio, separação, abandono ou viuvez. Indiretamente, ocorre quando mulheres se submetem a relacionamentos tóxicos, seja por dependência emocional, financeira ou mesmo imposição e crença religiosa, resultando na assunção unilateral do exercício do poder familiar por parte delas.

Partindo desse entendimento, é possível avançar na compreensão das disparidades de gênero no que diz respeito ao exercício do poder familiar e às decisões judiciais. Ao longo dos anos, as mulheres têm lutado por seu espaço e conquistado avanços significativos. Entretanto, a interpretação equivocada e a perpetuação do estereótipo do "sexo frágil" resultaram em homens fragilizados e acomodados, enquanto as mulheres, por vezes, tentam dissimular sua dor, sua luta e sua sobrecarga por receio ou por negligenciarem suas próprias fragilidades. O resultado, são mulheres emocionalmente doente e homens despreocupados.

Chegou o momento de mulheres reconhecerem suas vulnerabilidades, não no sentido de se colocarem como inferiores aos homens, mas sim de reconhecerem que também experimentam dor, cansaço e exaustão, e que necessitam compartilhar o peso do exercício do poder familiar. É imperativo que os homens reassumam suas responsabilidades parentais. Embora a guarda compartilhada reconheça os direitos parentais dos pais, é importante ressaltar que esses direitos vêm acompanhados de obrigações. No entanto, ao longo dos anos, os tribunais têm atribuído a ambos os pais papéis que compartilham esses direitos, mas as obrigações ainda recaem majoritariamente sobre as mulheres.

O poder familiar é uma responsabilidade intrínseca aos pais, que vai além do aspecto financeiro e alimentício, abrangendo afeto e dedicação exclusiva à educação moral dos filhos menores. É irrenunciável, indelegável e imprescritível, sendo um instituto de proteção que transcende o direito privado para se inserir no domínio do direito público.

Ainda não se pode obrigar os pais a amarem seus filhos, mas é possível criar políticas públicas que implementem a educação parental em uma perspectiva jurídica em todos os tribunais. Isso inclui discutir sobre a conjugalidade e parentalidade, ensinando mais sobre o poder familiar e desmistificando a ideia de que a mulher é superior e não tem suas fragilidades. Deve-se imputar ao homem e devolver a ele a responsabilidade sobre seus filhos. Caso contrário, continuarão a manter os homens acomodados frente a suas responsabilidades. Acreditar que a pensão e visitas quinzenais são suas únicas responsabilidades inerentes ao poder familiar afeta negativamente o direito de ser filho, sobrecarrega as mulheres e não contribui para a igualdade de gênero frente ao exercício do poder familiar.

A mulher não precisa ser pai e mãe, ela precisa ser apenas mãe, é essencial que ela possa desempenhar seu papel de mãe e contar com o apoio do Estado para incentivar os homens a assumirem suas responsabilidades parentais, para implementar ações que ensinem o homem a assumir seu papel frente as responsabilidades. Pois toda essa sobrecarga e desigualdade afeta de forma considerável a vida de crianças e jovens.

Conclusão

Após explorar diversos aspectos relacionados ao poder familiar, guarda parental, igualdade de gênero e responsabilidades parentais, podemos concluir que esses temas são de extrema importância não apenas no âmbito jurídico, mas também na sociedade como um todo. A compreensão do poder familiar como um conjunto de deveres irrenunciáveis e imprescritíveis, voltados para o bem-estar dos filhos, destaca a necessidade de políticas públicas e práticas judiciais que promovam a equidade de gênero e a participação ativa de ambos os genitores na vida dos filhos.

A implementação da guarda compartilhada como padrão, embora seja um avanço legislativo, enfrenta desafios na prática devido a estereótipos de gênero arraigados na sociedade. É fundamental desconstruir tais estereótipos e garantir que as decisões judiciais estejam alinhadas com o melhor interesse das crianças. Caminhamos para uma geração de orfandade paterna e continuar retirando do homem e sobrecarregando a mulher na justificativa de que a mulher é forte e guerreira e que o homem não quer essa obrigação e dever, é continuar alimentado a desigualdade social inerente ao exercício do poder familiar, e perpetuando o ciclo insano dos comportamentos destrutivos.

Além disso, a responsabilidade parental não deve ser encarada apenas como questão financeira, mas sim como um conjunto de deveres que incluem o cuidado, a educação e o suporte emocional dos filhos. Para isso, é essencial investir em educação parental em uma perspectiva jurídica e conscientização sobre as responsabilidades parentais, de modo a promover relações familiares mais saudáveis e equilibradas.

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Sobre a autora
Ingrid Ellen Pimentel Dalbem

Palestrante e Pesquisadora em Monoparentalidade feminina como condição psicossocial da mulher nas relações de casal. Membro da IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família). Graduação em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Vitória (CESV). Pós-graduações em Mediação, Pensamento Sistêmico, Direito de Família e Sucessões. Certificação em Practitioner PNL (Programação Neurolinguística). Formação em Comunicação Não Violenta. Terapia Integrativa e Mediação Extrajudicial

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