Paulo Sérgio Valle compondo direito: como um bacharel em Direito marcou a música brasileira desde a Bossa Nova e a canção de protesto até o pagode romântico e o sertanejo

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Recentemente, escrevi um artigo para jus.com.br ( https://jus.com.br/artigos/105550/como-os-advogados-marcaram-a-musica-popular-brasileira/2 ) em que tratei do quanto advogados marcaram a música popular brasileira, citando vários compositores ou intérpretes que também se formaram em Direito.

Na ocasião, deixei de citar um dos maiores compositores brasileiros que também é bacharel em Direito e um dos maiores defensores, inclusive à frente da UBC (União Brasileira de Compositores), dos direitos autorais, com relevante e destacada atuação a tais direitos referente: Paulo Sérgio Valle.

Valle é autor de quase 1.000 músicas gravadas -  incluindo sucessos de gêneros diversos como a Bossa Nova, canções de protesto, o rock brasileiro da década de 1980, o sertanejo e o pagode romântico - por artistas como seu irmão Marcos Valle, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Elis Regina, Roberto Carlos, Alcione, Ivete Sangalo, as duplas Chitãozinho & Xororó e Zezé Di Camargo & Luciano e os grupos Só Pra Contrariar (de pagode) e Paralamas do Sucesso (de rock). Para citar apenas alguns poucos.

Em suas letras, certamente encontramos muitas influências do campo jurídico, bem como de outras experiências vividas pelo compositor, na sua sensibilidade social, com um incrível cancioneiro romântico também bastante expressivo. 

É de Paulo Sérgio Valle e de seu irmão Marcos Valle, por exemplo, o "Samba de Verão", uma das mais célebres músicas da Bossa Nova, com diversas regravações internacionais: "você viu só que amor/ nunca vi coisa assim/ E passou nem parou mas olhou só pra mim/ Se voltar vou atrás vou pedir vou falar/ Vou dizer que o amor foi feitinho pra dar/ Olha é como o verão, quente o coração/ Salta de repente para ver a menina que vem".  Ou ainda o sucesso da década de 1980, na gravação do próprio Marcos, "Estelar" ("Tem que correr, tem que suar, tem que malhar/ Musculação, respiração, ar no pulmão/ Tem que esticar, tem que dobrar, tem que encaixar/ Um, dois e três, é sem parar, mais uma vez/ Quem não se endireitar não tem lugar ao sol").

Mas também da dupla são canções de protesto como "Black is beautiful" gravada por Elis Regina ("Black is beautiful/ Black is beautiful/ Black beauty is so peaceful/ I want a black so beautiful"), símbolo antirracista; "Capitão de Indústria" gravada por Marcos Valle e anos depois pelos Paralamas do Sucesso ("Estou cansado demais/ Eu não tenho tempo de ter/ Tempo livre de ser/ (...)/ Eu não vejo além da fumaça/ O amor e as coisas livres, coloridas/ Nada poluídas/ Eu acordo pra trabalhar/ Eu durmo pra trabalhar/ Eu corro pra trabalhar"), crítica às relações de trabalho no sistema capitalista; e "Viola Enluarada" gravada por Marcos Valle e Milton Nascimento ("A mão que toca um violão/ Se for preciso faz a guerra/ Mata o mundo fere a Terra/ A voz que canta uma canção/ Se for preciso canta um hino/ Louva a morte/ Viola em noite enluarada/ No sertão é como espada/ Esperança de vingança/ O mesmo pé que dança um samba/ Se preciso vai à luta/ Quem tem de noite a companheira/ Sabe que a paz é passageira/ Pra defendê-la se levanta/ E grita"), sobre a dicotomia entre tempos de paz e tempos de guerra ou de insurgência contra ataques sofridos. 

Sobre a questão de gênero, entremeada com a discussão sobre o acesso a trabalho e renda, ainda com Marcos Valle, Paulo Sérgio compôs a sensibilíssima "Sonho de Maria", mais uma dele gravada por Elis Regina, que também aborda a difícil temática do suicídio ("Tanta roupa pra lavar/ Todo o barraco pra arrumar/ Tanta coisa pra esperar/ Todo o morro a sambar/ Tanta gente pra invejar/ Nenhum sonho pra sonhar/ Maria parou de trabalhar/ No ar uma voz chamou/ Maria olhou o céu/ Maria desejou o céu (...)/ E Maria pra sempre acabou"). 

E em "Terra De Ninguém", que também  ganhou gravação de Elis, a dupla abordou a temática da desigualdade social junto à questão da terra, abordando a injustiça, as dificuldades da vida dos mais pobre e a necessidade da luta pelo reconhecimento de direitos:

Segue nessa marcha triste

Seu caminho aflito

Leva só saudade e a injustiça

Que só lhe foi feita desde que nasceu

Pelo mundo inteiro que nada lhe deu

Anda, teu caminho é longo

Cheio de incerteza

Tudo é só pobreza, tudo é só tristeza

Tudo é terra morta

Onde a terra é boa

O senhor é dono

Não deixa passar

Para no fim da tarde

Tomba já cansado

Cai o nordestino

Reza uma oração

Pra voltar um dia

E criar coragem

Pra poder lutar pelo que é seu

Mas um dia vai chegar

Que o mundo vai saber

Não se vive sem se dar

Quem trabalha é quem tem

Direito de viver

Pois a terra é de ninguém!

Vemos claramente o que se espera do pensamento de um jurista nestas cinco últimas canções cheias de sensibilidade social e de animus para promover a justiça e a dignidade da pessoa humana. E em outras canções do autor, claro. 

Além de canções com protesto social, nas canções de amor, vemos a realização do ideal do amor romântico que uma vida inteiramente dedicada ao trabalho não poderia vislumbrar, conforme a própria letra de "Capitão de Indústria" denuncia. Portanto, mesmo em músicas com temática amorosa, na obra de Paulo Sérgio Valle, parece haver um olhar para a importância da dimensão amorosa na vida do ser humano como parte integrante de sua dignidade, de sua plenitude, de sua existência. 

E assim, Valle é co-autor de canções românticas que impregnaram o imaginário popular brasileiro: 

(1) "Evidências" ("E nessa loucura de dizer que não te quero/ Vou negando as aparências/ disfarçando as evidências/ Mas para que viver fingindo/ Se eu não posso enganar meu coração/ Eu sei que te amo/ Chega de mentiras/ De negar meu desejo/ Eu te quero mais do que tudo/ eu preciso do teus beijos/ Eu entrego a minha vida/ para você fazer o que quiser de mim/ Só quero ouvir você dizer que sim") composta com José Augusto e um grande hit gravado por Chitãozinho & Xororó; 

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(2) "Se eu não te amasse tanto assim" ("Se eu não te amasse tanto assim/ Talvez não visse flores/ Por onde eu vim/ Dentro do meu coração") composta com Herbert Vianna e hit com Ivete Sangalo; 

(3) "Essa tal liberdade" ("O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade/ Se estou na solidão pensando em você/ Eu nunca imaginei sentir tanta saudade/ Meu coração não sabe como te esquecer/ Eu andei errado, eu pisei na bola/ Troquei quem mais amava por uma ilusão/ Mas a gente aprende, a vida é uma escola/ Não é assim que acaba uma grande paixão/ Quero te abraçar, quero te beijar/ Te desejo noite e dia/ Quero me prender todo em você/ Você é tudo o que eu queria") composta com Chico Roque e hit com o grupo Só pra Contrariar; 

(4) "Você me vira a cabeça" ("Você me vira a cabeça/ Me tira do sério/ Destrói os planos que um dia eu fiz pra mim/ Me faz pensar porque que a vida é assim/ Eu sempre vou e volto pros teus braços/ (...)/ Por que você não vai embora de vez?/ Por que não me liberta dessa paixão?/ Por quê?/ (...) Mas tem que me prender/ Tem que seduzir/ Só pra me deixar/ Louca por você") também composta com Chico Roque e hit gravado por Alcione; 

(5) "Aguenta coração" ("Coração, diz pra mim/ Por que é que eu fico sempre desse jeito?/ Coração não faz assim/ Você se apaixona e a dor é no meu peito/ (...) / Agora aguenta coração, já que inventou essa paixão/ Eu te falei que eu tinha medo, amar não é nenhum brinquedo/ Agora aguenta coração, você não tem mais salvação/ Você apronta e esquece que você sou eu") também composta com José Augusto, que foi quem gravou a versão que estourou como hit; 

(6) "Cheiro de Amor" ("De repente fico rindo à toa sem saber por quê/ E vem a vontade de sonhar, de novo te encontrar/ Foi tudo tão de repente/ Eu não consigo esquecer/ E confesso, tive medo/ Quase disse não") composta com José Ribeiro, Duda Mendonca e Jota Morais, gravada por Maria Bethânia, que fez sucesso com a canção; e

(7) "Cada volta é um recomeço" ("Nesses desencontros/ Eu insisto em te encontrar/ Como se eu partisse/Já pensando em voltar/ Como se no fundo/ Eu não pudesse existir sem ter você/ Toda vez que volto/ Eu te vejo sempre igual/ Como se a saudade/ Fosse a coisa mais banal/ E eu chegando sempre como um louco/ Pra dizer que amo você") composta com Nenéo e gravada por Zezé Di Camargo & Luciano. 

Além, claro, das tantas músicas de sua co-autoria gravadas por Roberto Carlos ("Tanta solidão", "Às vezes penso", "Confissão", "Olhando estrelas", "Como foi, por que foi, onde foi", "Me disse adeus", "Contradições", "Coisas do Coração", etc.), com parceiros como Mauro Motta e Eduardo Lages, entre as quais a belíssima "Cenário", dele e Lages, em que o ofício do ator é meio de se tratar do amor:

O meu coração é como um palco

Tantas histórias já vividas

Dramas romances comédias paixões

Um entrar e sair de ilusões

Sem saber se é pra rir ou chorar

Já tentei mudar o meu cenário

E esse coração tão solitário

Mas cada vez que as luzes

Se acendem sobre mim

De novo a mesma estória o mesmo fim

São lagrimas de amor que a maquiagem

Disfarça mas não muda o personagem

Sorrisos tantas vezes encenados

Deixados de lado na vida 

Esse coração como um teatro

Vive em busca de um final perfeito

E agora em cena aberta eu vejo

Como ainda te desejo

Querendo ser feliz meu coração pede bis.

Enfim, são muitas as canções de Paulo Sérgio Valle, e este artigo faz justiça ao autor, que não foi citado em nosso "Como os advogados marcaram a Música Popular Brasileira". E mais sobre ele, sua obra e suas letras poderá ser conhecido no livro "Contos e letras: uma passagem pelo tempo" de sua autoria, onde aborda as letras citadas acima e outras, como a sugestiva (para um advogado) "Contrato Assinado", mais uma dele e Chico Roque, gravada por Sandra de Sá ("Eu não tenho contrato assinado com você/ Mas eu tenho direitos na lei da vida/ Não abro mão do meu amor/ Custe o que custar/ Só quero ter você pra mim/ Sem dividir jamais") e  "Um Novo Tempo", composta com Marcos Valle e Nelson Motta e jingle de uma conhecida emissora de TV:   

Hoje é um novo dia

De um novo tempo que começou

Nesses novos dias, as alegrias

Serão de todos, é só querer

Todos os nossos sonhos serão verdade

O futuro já começou

Hoje a festa é sua

Hoje a festa é nossa

É de quem quiser

Quem vier

A festa é sua

Hoje a festa é nossa

É de quem quiser

Quem vier...

A festa é de Paulo Sérgio Valle, mais um bacharel em Direito que encontrou o caminho das letras de música popular um meio de chegar a seu povo com mensagens de resistência, liberdade, amor e esperança! 

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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