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Criminologia, direitos humanos e procedimentos epistemológicos.

O pensamento crítico e seus fundamentos programáticos nas teses e dissertações da Faculdade de Direito da USP

Criminologia, direitos humanos e procedimentos epistemológicos. O pensamento crítico e seus fundamentos programáticos nas teses e dissertações da Faculdade de Direito da USP

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Nas teses e dissertações jurídicas da USP, destaca-se o avanço do maximalismo penal e o abuso do poder discricionário da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário.

Foram selecionadas quatro publicações do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito, do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo, USP, Brasil), do período 2009-2019, extraídas de um conjunto mais amplo de 94 títulos da seção digital dos "Direitos Humanos", com o objetivo de conhecer os procedimentos epistemológicos que permitem realizar uma pesquisa aplicada na área da Criminologia.


INTRODUÇÃO

O objetivo geral desse estudo é organizar um metaprograma procedimental de pesquisa em Criminologia Humanista, utilizando a contribuição de alguns trabalhos acadêmicos da Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, USP, Brasil, do período 2009-2019, onde se encontram 94 títulos abordando temas variados dos Direitos Humanos e especificamente quatro títulos expressamente dedicados à investigação do “crime”, do “delinquente”, da “vítima” e dos “meios de controle social”, que são objetos de estudo tradicionais da Criminologia. A fim de realizar esse objetivo geral, primeiramente, será formatado o conteúdo apresentado por cada autor dentro de seis categorias epistemológicas que delimitam sequencialmente o modo de produção do conhecimento de cada tese ou dissertação. Em seguida, as mesmas categorias epistemológicas servirão como canais de intercomunicação entre os programas de pesquisa de base, que serão combinados sistematicamente dando origem a uma síntese progressiva na forma de um metaprograma de pesquisa da Criminologia Humanista.


QUESTÕES FUNDAMENTAIS

  1. Quais foram os procedimentos ontológicos no material acadêmico selecionado que garantiram a interação do delito, do delinquente, da vítima e dos meios de controle social? O procedimento foi positivista-etiológico, crítico ou pós-crítico?

  2. Quais foram os procedimentos metodológicos usados na coleta de dados? O método de abordagem foi causalista, correlacionista, processualista, propositivo ou integrativo? O método de procedimento foi interdisciplinar ou transdisciplinar?

  3. Quais foram os procedimentos axiológicos? Qual foi o modo de produção ideológica do conhecimento? O procedimento foi positivista, marxista, liberal ou anarquista?

  4. Quais foram as teorias gerais e específicas que serviram à discussão dos Direitos Humanos?

  5. Quais foram os procedimentos práticos ou institucionais recomendados pelos pesquisadores? O procedimento foi maximalista, minimalista ou abolicionista?

  6. Por último, quais foram os procedimentos contextualizadores utilizados para situar o objeto de estudo? O procedimento foi histórico; social; ou combinatório?


MÉTODO

O primeiro procedimento, ontológico, solicita ao pesquisador que ele fundamente a natureza científica da investigação, e especifique o objetivo e o objeto de estudo da pesquisa. O procedimento metodológico, em seguida, deve disponibilizar os métodos e as técnicas destinados à coleta de dados. O procedimento axiológico, por sua vez, prioriza valores, ideologias e sentimentos que expressam a visão de mundo do pesquisador. Na sequência, o procedimento teórico procura abstrair ou transcender o conteúdo empírico, realizando explicações ou interpretações que delimitam o alcance da discussão programática e estabelecem por conseguinte os pontos críticos aprofundados pelo pesquisador. Em seguida, o procedimento praxeológico deve apontar problemas e tentativas de solução com a apresentação de modelos que imitam e controlam virtualmente a realidade ou propõem medidas que atendam às necessidades utilitaristas do conhecimento. Finalmente, o pesquisador deve contextualizar o tempo histórico e o espaço social do seu objeto de estudo (MONTARROYOS, 2017). Reforçando a proposta desse roteiro, Zaffaroni & Oliveira (2010, p. 403) destacaram que uma condição fundamental para se delimitar qualquer ciência, após exprimir a essência do seu objeto, consiste em precisar o método de investigação para a conquista da verdade científica, visto que nenhum conhecimento adquire característica própria de ciência sem assentar o método adequado, que contenha no mínimo as técnicas e as práticas através das quais serão atendidas as necessidades para se conhecer realmente o objeto de estudo.


MODALIDADES EPISTEMOLÓGICAS DA CRIMINOLOGIA

A Criminologia Positivista, aplicada nas ciências comportamentais, procura descobrir as causas do crime. Conforme explicaram Zaffaroni & Oliveira (2010, p. 334) o positivismo criminológico valoriza substancialmente a individualização do tipo de delinquente por atitude congênita ou delinquente nato. Tendência congênita significa apenas inclinação natural, disposição ao delito, necessidade de cometê-lo, constituindo, no indivíduo, uma anormalidade de sentido ético e social que determina o modo específico de reagir aos estímulos do ambiente. Na área jurídica por sua vez, a preocupação da Criminologia Positivista é com a manutenção da cultura normativista e idealista do Direito que deve ser aplicado com isonomia sobre todos os cidadãos. Criticando essa filosofia da ciência Salo de Carvalho (2010, p. 16) observou que:

[…] o modelo oficial das ciências criminais vislumbra os demais saberes como servis, permitindo apenas que forneçam subsídios para a disciplina mestra do direito penal. A arrogância do Direito Penal, aliada à subserviência das áreas de conhecimento que são submetidas e se submeteram a este modelo, obtém como resultado o reforço do dogmatismo, o isolamento científico e o natural distanciamento dos reais problemas da vida.

De outro modo, a Criminologia Crítica considera que as leis não são elaboradas e aplicadas o vazio. Os críticos acreditam que a teoria e a prática do Direito e da Justiça Criminal refletem decisões enviesadas que fazem parte do contexto social e político.

Segundo Juarez Cirino dos Santos no prefácio da edição brasileira da obra “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal”, do autor Alessandro Baratta:

O desenho dessa criminologia crítica mostra o contraste com a criminologia tradicional: primeiro, desloca o enfoque teórico do autor para as condições objetivas, estruturais e institucionais, do desvio; segundo, muda o interesse cognoscitivo das causas (etiologia) para os mecanismos de construção da realidade social; do desvio especialmente para a criação e aplicação das definições de desvio e processo de criminalização; terceiro, define criminalidade como status atribuído a determinados sujeitos através de dupla seleção: dos bens protegidos penalmente nos tipos penais e dos indivíduos estigmatizados no processo de criminalização.

A Criminologia Crítica pode ser liberal, marxista e anarquista. Em qualquer modalidade, confronta o ideal com o real. Na perspectiva liberal da Escola de Chicago, que utiliza várias teorias do Labeling approach, a Criminologia procura conhecer: 1- a competição entre grupos de interesses, 2- a racionalidade dos sujeitos, e 3- as políticas públicas que buscam desestimular a prática do crime.

Tanto no século XVIII como atualmente, a Criminologia Liberal preserva o princípio da racionalidade e liberdade do indivíduo. Os adeptos dessa doutrina chegam ao ponto de propor nos dias atuais a liberação das drogas (maconha, cocaína, etc.) a fim de que o cidadão faça as suas escolhas pessoais livremente sem interferência da ditaura e burocracia do Estado, coincidindo essa ideia profundamente com o individualismo liberal do filósofo Stuart Mill.

O garantismo também faz parte do Liberalismo, tanto no século XVIII como atualmente. No passado, destacou-se Beccaria com a sua obra “Dos delitos e das penas”. Hoje, verifica-se o neobeccarianismo, através do neogarantismo de Ferrajoli.

Segundo Beccaria, o Estado foi criado através de um pacto penal com a finalidade de promover justiça e defender direitos individuais e sociais. Nessa direção, conforme destacou Salo de Carvalho (2010, na introdução do livro “Anti-manual de Criminologia”):

Os Homens em troca de segurança, optam por limitar a Liberdade, alienando certo domínio ao repositório comum denominado Estado. Como regulador instituído, caberia ao poder instituído executar esta quantidade alienada em caso de violação das leis de convivência. E o direito penal será vislumbrado como mecanismo idôneo para resguardar os valores e interesses expressos no contrato.

Deve-se admitir paradoxalmente o fato de que o Estado de Direito ao longo do tempo passou a produzir o estado de natureza hobbesiano, desenvolvendo práticas abusivas ou omissivas do poder. Contra os abusos do Leviatã, semelhantemente o neogarantismo ou neobeccarianismo reage com a seguinte crítica atual:

Em razão de a intervenção penal tender sempre ao excesso - seja no plano da elaboração (legislativo), da aplicação (judiciário) ou da execução (executivo) das leis -, sua utilização deveria ocorrer apenas em última instância (ultima ratio), nas situações de maior gravidade aos principais interesses sociais.

A abordagem anarquista da Criminologia Crítica, em outra direção, afirma que é preciso acabar com o sistema prisional por ser uma instituição moralmente degradante. A esse respeito, é interessante lembrar as ideias do jornalista francês Girardin, ainda no século XIX.

Zaffaroni & Oliveira (2010, p. 149) registraram que:

Girardin lembra que os anais dos países mais civilizados estão lotados de condenações extremas e cruéis por bruxaria e sortilégios como também pessoas que acreditaram que tinham liberdade de pensar e de expressar-se, e mais recentemente os chamados delitos de imprensa. Pergunta-se quem será culpável por essas condenas, se os condenados ou os juízes?, e conclui que é tempo de sair finalmente do labirinto penal em que a sociedade extraviou a humanidade durante séculos. Afirma que para isso se deveria começar eliminando os delitos que só existem na imaginação dos povos ignorantes e de legisladores atrasados.

Na perspectiva marxista da Criminologia Marxista, diferentemente, considera-se que a sociedade apresenta uma estrutura socioeconômica desigual, representada por burgueses e proletários que lutam pela hegemonia do poder.

Inserida nesse quadro social conflituoso a pesquisa crítica procura desmascarar o mito da igualdade penal e o mito da regularidade de exercício do poder, e demonstra nessa direção que as instituições funcionam como aparelhos ideológicos e repressivos do Estado burguês.

Segundo Baratta (2002, p. 215):

Comparada com a criminologia tradicional, a criminologia crítica se coloca em uma relação radicalmente diferente quanto à prática. Para a criminologia tradicional o sistema penal existente e a prática oficial são os destinatários e beneficiários de seu saber, em outras palavras, o príncipe para o qual é chamada a ser conselheira. Para a criminologia crítica o sistema positivo e a prática oficial são, antes de tudo, o objeto de seu saber [...]. Sua tarefa imediata não é realizar as receitas da política criminal, mas examinar de forma científica a gênese do sistema, sua estrutura, seus mecanismos de seleção, as funções que realmente exerce, seus custos econômicos e sociais e avaliar, sem preconceitos, o tipo de resposta que está em condições de dar, e que efetivamente dá aos problemas sociais reais. Ela se coloca a serviço de uma construção alternativa ou antagônica dos problemas sociais ligados aos comportamentos socialmente negativos. De maneira geral, é previsível na Criminologia Crítica que os agentes políticos que têm poder de fazer leis ou de influenciar o processo legislativo procurem meios que possam beneficiá-los. Diante desse quadro, a previsão da Criminologia Crítica é que surgirão danos institucionais aos indivíduos e aos grupos contrários aos interesses das elites do poder.

Em geral, a Criminologia Crítica utiliza o método interacionista concentrado na seguinte pergunta: como certas condutas são criminalizadas?; ou então, como alguns sujeitos tornam-se criminosos na percepção da comunidade? Nesse sentido a teoria do etiquetamento do sociólogo Goffman mostrou que o estigma gera sentimentos ruins na vítima que pode reagir de várias maneiras, desde a resignação até à rebeldia total por meio de atos violentos contra a sociedade.

Uma outra modalidade epistemológica, a Criminologia Pós-crítica, procura conhecer a vivência das pessoas, priorizando a percepção dos sujeitos sobre o sistema de justiça criminal.

Salo de Caravlho (2010, p. 31) explicou que a Criminologia Pós-Crítica tem base na filosofia da Pós-modernidade. Em sua avaliação, “duas características centrais podem, portanto, seguindo a crítica geral, serem ressaltadas: o reconhecimento do fim das grandes narrativas e a impossibilidade de aceitação de qualquer tipo de verdade universal”.

Reforçando essa terceira modalidade epistemológica, os especialistas americanos Ferrel & Sanders (“Toward a cultural criminology”; 1995) afirmaram que a criminologia cultural incorpora ampla gama de orientações teóricas (interacionistas, construtivistas, críticos, feministas, culturalistas, pós-modernos e formadores de opinião) procurando compreender a confluência entre cultura e crime na vida contemporânea (apud CARVALHO, 2010, p. 37).

Sendo diferente da Criminologia Crítica que procura mostrar que o criminoso e a vítima são portadores de um minissistema ambulante (racista, machista, burguês, penal, e carcerário) a Criminologia Pós-Crítica considera que o sujeito é portador de uma vivência; consequentemente, a maneira pessoal e cultural de perceber as instituições pode aprofundar o conhecimento científico a respeito da complexidade do fenômeno criminal e ajudar o criminologista a superar as fórmulas simplistas e padronizadoras do Direito Penal.

Os penalistas pós-críticos buscam apoio na Antropologia Cultural com o objetivo de conhecer a pluralidade de percepções e de sentimentos sobre o mesmo sistema de justiça criminal. Entretanto, é oportuno lembrar, a participação da Antropologia Cultural na Criminologia não é uma novidade. A Escola de Chicago no século passado já produziu a teoria da subcultura delinquente, entre outras teorias vinculadas à Antropologia Cultural.

Em geral, um programa de pesquisa em Criminologia produz conhecimento especializado sobre quatro objetos de estudos interligados: delito, delinquente, vítima e meios de controle social.

O delito pode ser positivado e não positivado, a exemplo das agressões praticadas contra a dignidade da pessoa que não precisam de nenhuma Lei escrita para se configurarem como delitos naturais.

O delinquente ou criminoso, outro objeto de estudo da Criminologia, pode ser um indivíduo racional; uma vítima do sistema capitalista; ou uma criatura doente e anormal que precisa ser afastada do convívio social.

Para os criminologistas da Escola Crítica, por exemplo, nenhuma pessoa nasce criminosa, pois se trata de um rótulo adquirido nas relações sociais. Para os biopositivistas, diferentemente, certos tipos de pessoas são por natureza pré-criminosas, conforme propôs inicialmente Lombroso em sua obra “O homem delinquente”.

Por sua vez, os meios de controle social são representados pelas ações formais dos órgãos públicos, e informais da sociedade em geral. Na agenda de trabalho das políticas públicas existem diversas propostas de prevenção e repressão ao crime; de tratamento e isolamento do criminoso; de fiscalização e inclusão social do agressor; de guerra ao inimigo e solidariedade ao presidiário, entre outras proposituras.

Finalmente, a vítima representa a pessoa ou ente que sofre os prejuízos da agressão e do crime. Ela pode ser humana e não humana (como animais, Natureza, Sociedade, etc.). Existem vítimas culpadas e corresponsáveis pelo dano que sofreram.

A contribuição do vitimologista Benjamim Mendelsohn da década de 1940 continua sendo aplicada nessa subdisciplina, considerando que existe: 1- a vítima inocente, que não concorre de forma alguma para o injusto típico; 2- a vítima provocadora que, voluntária ou imprudentemente, colabora com o ânimo criminoso do agente; e 3- a vítima agressora, simuladora ou imaginária, suposta ou pseudovítima, que acaba justificando a legítima defesa de seu agressor (PENTEADO FILHO, 2018).

Também é útil a classificatória onde a vitimização pode ser do tipo primária: provocada pelo cometimento do crime, ou seja, pela conduta ilícita que violou os direitos da vítima. Essa vitimização pode causar danos variados (materiais, físicos, psicológicos), de acordo com a natureza da infração, a personalidade da vítima, a sua relação com o agente violador, e com a extensão do dano etc. Ou pode ocorrer a vitimização secundária praticada pelo descaso e violência das instituições públicas. Ou ainda a vitimização terciária, praticada pela exclusão social.

Atualmente o conceito de causalidade abarca tanto causas distantes como próximas do delito que funcionariam nesse último caso como “gatilhos”. Por exemplo, a causa próxima da delinquência juvenil pode ser o estigma sofrido nas escolas, enquanto a causa distante pode ser o desajuste familiar ou então o sistema cultural em que vive o agressor e a vítima, etc.(WEATHERBURN, 2011).

A Criminologia etiológica ou positivista utiliza também o método causal-probabilista, reconhecendo nesse caso que existem fatores de risco ou virtuais que aumentam a chance de ocorrência do delito e que no futuro poderão se manifestar efetivamente como causa de um evento. Nessa direção metodológica os criminologistas elaboram “fatores protetivos”, evitando ou minimizando os riscos de ocorrência do delito (MONCHALIN, 2009).

Outro submétodo de abordagem, correlacionista, observa a ocorrência ou ausência simultânea de variáveis, exigindo a percepção do pesquisador a respeito das possíveis forças invisíveis ou ocultas que induzem os dados ao fenômeno da correlação, que significa relação mútua entre dois eventos, correspondência, ou associação entre eles.

Outro submétodo, denominado processualista, despreza o debate causal. E como alternativa, investiga processos que incluem significados, rotulações e imagens sociais. O interacionismo simbólico e a Criminologia dialética reforçam esse tipo de procedimento.

Paradoxalmente, de acordo com a crítica dos causalistas o processo de rotulação criminal (por exemplo, o estigma) acaba se tornando um fator causal do crime (na abordagem determinista) ou então um fator de risco (na abordagem possibilista). Contra esse ponto de vista infelizmente os processualistas não apresentaram defesa convincente e são confundidos como causalistas.

Outro submétodo de abordagem, chamado propositivo, prevê o engajamento político do criminologista. Nesse caso, Dias & Andrade (1997, p. 5) reconheceram que “as relações entre a Criminologia e a ideologia não têm apenas um sentido, pois também a ideologia sofre a influência das concepções [científicas] criminológicas”.

Outro submétodo de abordagem, integrativo, reúne o conhecimento das causas com as correlações, com os processos sociais de rotulação e com as propostas de solução política do problema criminal. Infelizmente, a integração do causalismo com o processualismo é pouco praticada nos trabalhos acadêmicos uma vez que os adeptos da Criminologia etiológico-positivista sofrem bombardeios ideológicos da Criminologia Crítica, que tem aversão ao risco de uma suposta Criminologia neolombrosiana.

Em relação aos métodos de procedimentos a maioria dos especialistas enfatiza a predominância histórica da interdisciplinaridade. De fato, a Criminologia é uma ciência interdisciplinar espontaneamente pois o pesquisador tem contato com indivíduos, normas, fatos, valores, instituições, discursos e com a História da Ciência e da criminalidade, o que resulta o nascimento de diversas subdisciplinas: Penalogia, História Criminal, Sociologia Criminal, Política Criminal, Vitimologia, Psicologia Criminal, Economia Criminal, etc. Ao lado da interdisciplinaridade existe ainda outro submétodo, a transdisciplinaridade, cuja característica principal é produzir estruturas híbridas do conhecimento. Entretanto, a fraca utilização desse método na Criminologia sofre interferência do preconceito intelectual, por isso não faz muito sucesso entre os crírticos. Nesse sentido, é possível encontrar na literatura especializada o mesmo criminalista defendendo a aplicação da transdisciplinaridade, mas impedindo a participação da metodologia biológica do crime.

É oportuno relembrar que os pioneiros positivistas, especificamente Enrico Ferri, na obra “Sociologia criminal”, já desenvolveram a transdisciplinaridade, levando a sério a abordagem bio-físico-social da criminalidade. Equivocadamente, portanto, os especialistas contemporâneos afirmam que a transdisciplinaridade é uma novidade pós-moderna, quando na verdade tal procedimento é uma antiguidade na História da Criminologia. A esse respeito, é imprescindível reler as obras dos pioneiros.

Na sequência da estrutura procedimental do programa de pesquisa da Criminologia o comando axiológico deverá informar que existem quatro modos ideológicos de produção do conhecimento: 1-positivista, 2-liberal, 3-marxista e 4-anarquista.

A pesquisa positivista utiliza teorias explicativas, causais e objetivistas, além das chamadas teorias do consenso, que justificam a imposição da ordem e da harmonia social, mesmo que sejam mantidas as desigualdades sociais entre pobres e ricos na sociedade. Por sua vez, a pesquisa liberal, segundo Baratta (2002), procura recompor a ordem penal propondo novas práticas institucionais eficientes e minimalistas. De outro modo, a pesquisa marxista, de acordo com Baratta (2002), considera que as normas do Direito penal são elaboradas e aplicadas seletivamente, refletindo a desigualdade econômica da sociedade capitalista. Um aspecto essencial da Criminologia Marxista é a abordagem etiológica onde o Capitalismo é a causa dos delitos (AKERS & SELLERS, 2013); entretanto, os marxistas se declaram radicalmente contra a Criminologia etiológica. A pesquisa anarquista, em outra direção, produz Criminologia Radical e contesta a existência do direito criminal e do próprio Estado. Anarquistas como Nils Christie; Thomas Mathiesen; e Louk Hulsman utilizaram argumentos anarco-reformistas e outras vezes anarco-revolucionários na fundamentação do abolicionismo penal e carcerário. Em geral, o anarquismo metodológico busca “problematizar de forma qualificada o estudo das distintas formas de manifestação do crime nas sociedades complexas, indicando a impossibilidade de um modelo teórico universal que [equivocadamente] forneça respostas adequadas” (CARVALHO, 2010, p. 26).

Avançando na composição do programa de pesquisa da Criminologia o procedimento teórico deverá especificar as teorias ontológicas, metodológicas e axiológicas; as teorias gerais e específicas; bem como as teorias pragmáticas e contextuais.

Inicialmente, as teorias ontológicas descrevem os objetos de estudo e favorecem a interatividade desses mesmos objetos, destacando-se primeiramente a teoria da violência. Considera-se que a violência é um comportamento destrutivo de natureza física ou simbólica que incide sobre a vítima. Pode ser causada pela agressividade do sujeito quando impõe a sua vontade destruidora e opressiva, ou então quando o indivíduo manifesta aversão contra certas pessoas e situações do dia a dia. Também a cultura legitima o sentimento destrutivo, justificando o racismo e o xenofobismo como formas aceitáveis de violência. Politicamente, Governos também criam inimigos que justificam o uso desregrado da força e da violência pública. A espiritualidade também dá suporte às guerras santas e aos danos espirituais refletindo a desarmonia do pluralismo ideológico na sociedade.

Em seguida, as teorias metodológicas servem para descrever a forma como serão analisados os dados coletados, podendo ser explicativas, interpretativas e integrativas. As teorias explicativas enfatizam a clareza máxima dos objetos de estudo e a impessoalidade do conhecimento. As interpretativas descrevem o significado e a percepção do sujeito. Nessa modalidade desenvolve-se o método compreensivo, dialógico, relativista, subjetivista ou então cético, com o sujeito-pesquisador se declarando formalmente atuante na produção do conhecimento. As integrativas, por último, consideram que tudo é solidário; e “o que importa não é suprimir as distinções e oposições, mas derrubar a ditadura da simplificação disjuntiva e redutora” do saber (MORIN, 1977, p. 23).

As teorias axiológicas, em outra direção, fundamentam as ideologias políticas e os valores epistemológicos correspondentes à visão de mundo do pesquisador. Dias & Andrade (1997, p. 65) lembram a esse respeito que “o conceito de crime – conglomerado histórico de elementos jurídicos, éticos, religiosos, de estereótipos e de coeficientes sociológicos – não é um conceito unívoco; [...] possui significados diferentes para pessoas diferentes”; [e] não encontra ainda os contornos do significado que lhe é correntemente adscrito”.

Na sequência, as teorias gerais e específicas graduam o alcance de observação do pesquisador sobre a realidade. Vários comentaristas da Criminologia apontam, tradicionalmente, a utilidade das teorias do consenso e do conflito. Dias & Andrade (1997) enfatizaram, por exemplo, a contribuição das teorias biológicas, sociológicas e psicológicas. Já na Sociologia Criminal destacam-se a teoria da associação diferencial, da subcultura delinquente, do autocontrole, do vínculo social, do etiquetamento, da anomia, das zonas concêntricas, do estigma, etc.

As teorias pragmáticas, na sequência do programa de pesquisa da Criminologia, sustentam o discurso técnico e interventor sobre a realidade. A teoria biológica, por exemplo, justificou a política criminal de guerra contra o crime, identificando o criminoso como pessoa perigosa, enferma, anormal, que mereceria tratamentos médicos e psicológicos obrigatórios. As teorias biológicas também orientaram políticas preventivas no campo da saúde pública, buscando atacar o mal pela raiz, tratando os pré-criminosos com tranquilizantes e terapias de choque (DIAS & ANDRADE, 1997). Por outro lado, as teorias sociológicas do labeling approach defendem a descriminalização; a não intervenção radical do Direito Penal e do Poder Judiciário; as medidas socioeducativas; e o devido processo penal com a garantia dos direitos fundamentais, ficando patente a importância do minimalismo penal. Considera-se ainda nas teorias do labeling approach: que as pessoas precisam ter oportunidades sociais para mostrarem seus talentos; que devem ser tratadas com dignidade; e que seus valores pessoais precisam incluir autoconfiança, tolerância, respeito à diversidade e otimismo sobre as dificuldades da vida (DIAS & ANDRADE, 1997). De outro modo, as teorias psicológicas desenvolvem uma política integradora da pessoa e ganham evidência as medidas socioeducativas dentro e fora das instituições de segurança pública (DIAS & ANDRADE, 1997). Na teoria psicanalítica, por sua vez, encontra-se uma política criminal preocupada com o equilíbrio e a valorização do ego do criminoso. Defende-se nesse tipo de teoria um novo Direito Penal-Processual que possa restaurar a personalidade do criminoso. Concretamente, nessa teoria a política penal supervaloriza as medidas terapêuticas atribuindo mais poder aos psicanalistas, e menos poder a juízes e agentes prisionais. Teóricos mais radicais no passado defenderam inclusive, o abolicionismo penal, alegando que o crime é um sintoma de doença mental, devendo prevalecer o tratamento terapêutico, com a implementação de medidas sócio psicanalíticas, alimentadas por uma filosofia institucional humanista. Constata-se, ainda, que o abolicionismo penal nessa teoria valoriza a progressiva medicalização do sistema punitivo com o objetivo de restaurar ou produzir autocontrole no ego do apenado (DIAS & ANDRADE, 1997).

As teorias contextuais, por último, enfatizam o discurso histórico e social da pesquisa. A esse respeito, Dias & Andrade (1997, p. 267) afirmaram que “constitui o delinquente e a contra realidade que ele representa um dos símbolos mais expressivos do terror anômico, [e] a sua expulsão, internamento, ou prisão, [são] essenciais na estratégia de legitimação da ordem social”.

Avançando na estrutura do programa de pesquisa da Criminologia, o procedimento praxeológico deve produzir alguma alternativa institucional (minimalista, abolicionista e maximalista) com o objetivo de resolver problemas teóricos e empíricos descobertos ao longo da investigação.

O minimalismo propõe diminuir a intervenção do Estado e do Direito Penal com a descriminalização e a despenalização. O abolicionismo, de outro modo, defende a extinção do Direito Penal e do cárcere, e no grau extremo, a derrubada do Estado de Direito. Por sua vez, o maximalismo propõe a legalização de novos tipos penais e o reforço da repressão pública (MONTARROYOS, 2017; GRECO,2009).

O último procedimento epistemológico na composição do programa de pesquisa da Criminologia pede ao pesquisador a contextualização dos objetos de estudo. A Estatística criminal, nessa direção, demonstra que existe uma relação de proximidade entre pobreza e criminalidade (PENTEADO FILHO, 2018). Além disso, desordem social, tráfico de drogas, banalização da violência, etc., funcionam como incentivos positivos à criminalidade e do ponto de vista estatístico podem se apresentar correlacionados (PENTEADO FILHO, 2018).


PROGRAMA PROCEDIMENTAL DE PESQUISA EM POLÍTICA CRIMINAL

Rui Carlo Dissenha (2013), em sua tese de doutorado intitulada “Por uma política criminal universal: uma crítica aos tribunais penais internacionais”, avaliou o desempenho da Justiça Penal Internacional e do Direito Internacional Penal e apresentou propostas corretivas que pretendem superar o exclusivismo da tradição punitiva incluindo em seu modelo uma política de prevenção dos crimes. A meta desse programa de pesquisa é identificar os meios teóricos e empíricos que possibilitariam a emergência de uma política criminal universal resistente ao Direito Penal do Inimigo, garantindo-se a isonomia processual e a dignidade da pessoa humana.

Na ontologia garantista desse programa de pesquisa considera-se que o Direito Internacional Penal e a Justiça Penal Internacional são controlados pelo paradigma repressivo e também pela conveniência dos países poderosos que atuam tardiamente sobre os agentes estatais que já praticaram o crime contra a Humanidade, o que não favorece a consolidação dos Direitos Humanos visto que é necessário desenvolver políticas e normas criminais preventivas dos crimes em cada Estado-nação. Questiona-se, nesse programa de pesquisa, o mito da igualdade penal nas relações internacionais com a constatação de que existe uma seletividade nos julgamentos dos tribunais internacionais que são realizados, ou não, dependendo da vontade política das potências mundiais interessadas.

A metodologia desse programa de pesquisa utiliza a interdisciplinaridade entre Direito Penal, Ciência Política e História. A metodologia é processualista porque descreve o Direito Internacional Penal de forma crítica, e refuta a prática maximalista do poder internacional, que pela sua natureza ideológica deixa de produzir normas e políticas preventivas que poderiam evitar grandes tragédias humanas praticadas pelo próprio Estado de Direito.

Na axiologia desse programa de pesquisa são projetados dois valores que deveriam compor o jus puniendi internacional: democracia e antropocentrismo dos Direitos Humanos. A crítica desse programa de pesquisa recomenda medidas teóricas e empíricas que podem otimizar a garantia dos Direitos conceitos críticos: Direito Penal Internacional e Política Criminal Universal. Apoiado na visão de mundo garantista, esse programa de pesquisa propõe limitar o direito de punir, imaginando que o Estado deve garantir direitos individuais, deixando de lado assim os paradigmas que desumanizam o criminoso.

Aproveitando algumas proposições do criminologista Zaffaroni, o autor dessa tese propõe que devemos mudar a visão a respeito das penas que são vistas como medidas de Guerra; e no lugar dessa tradição devemos empregar uma nova analogia moderadora, pacifista, que incentive a cultura da paz e o direito internacional humanitário. Especificamente, na tradição intelectual que vê a pena como instrumento de guerra política ou social, destaca-se o direito penal do inimigo com sua estratégia punitiva que desse modo não pretende domesticar ou controlar o inimigo, mas especialmente anular a sua cidadania, impedindo-o de exercer Direitos Humanos processuais.

Contra essa tradição, a axiologia desse programa de pesquisa estabelece o indivíduo como centro interpretativo da justiça criminal internacional; ganhando evidência assim o paradigma antropocêntrico (DISSENHA, 2013, p. 52). Idealmente, os Direitos Humanos deveriam ter função limitadora do poder de julgar dos tribunais internacionais; além disso, deveriam impor sobre os tribunais a função protetiva da dignidade humana com a garantia integral das normas destinadas à proteção do indivíduo em situações de possíveis ataques do Leviatã.

O programa de pesquisa desse autor considera também que as regras internacionais e nacionais devem ser aplicadas para garantir a segurança jurídica necessária à construção de um ser livre em coexistência (DISSENHA, 2013, p. 52), preservando-se nesse quadro ideal o exercício do poder penal como necessidade imperiosa (DISSENHA, 2013, p. 53).

As metas institucionais da pesquisa são: 1- a proteção mínima dos Direitos Humanos; e 2- a proteção do corpo, da vida e da liberdade dos indivíduos. A teoria de base desse programa de pesquisa critica a pena internacional avaliando que - no atual estágio - não são resolvidos os problemas humanitários, pois as autoridades internacionais atuam no extremo das calamidades, julgando os criminosos depois das maldades e das agressões consumadas. Reforçando essa teoria crítica, o autor desse programa de pesquisa notou que os tribunais penais internacionais mantêm exclusivamente medidas repressivas no combate aos crimes já realizados contra a Humanidade. Diante desse vício penal, a proposta é repensar a repressão adaptada aos Direitos Humanos e à política de prevenção dos crimes, minimizando fatores de risco relacionados ao avanço do autoritarismo, da cultura punitivista e do estatocentrismo.

Destaca-se na visão prática desse programa de pesquisa o tipo ideal de uma política criminal universal que poderia defender os Direitos Humanos; frear a violência do Estado; e além disso repensar a base social dos delitos e das punições. Recomenda-se através desse tipo ideal de política criminal que o Direito Penal seja a última medida punitiva na sociedade. E se for realmente necessário utilizá-lo, que sejam obrigatoriamente humanizadas as penas. A alternativa encontrada na praticologia desse programa de pesquisa é desconstruir o mito de que a justiça criminal internacional é aplicada igualmente entre todos os países. Na prática, o abolicionismo penal ficou fora da pesquisa, pois o autor acredita que existe um bom modelo de punição que ainda pode ser experimentado no futuro da Humanidade. Na política idealizada por esse programa de pesquisa os tribunais internacionais deveriam garantir o devido processo penal, evitando ao mesmo tempo a ânsia irracional da opinião pública mundial pelo desejo de vingança insuflada pela Mídia e pelo Estado. O tipo ideal de política criminal internacional proposto pelo autor desse programa de pesquisa imagina construir um novo pacto social; democratizar as responsabilidades das Nações; e repensar a ligação entre desenvolvimento humano e economia. Nesse tipo ideal de política criminal, haveria necessidade de uma legítima tutela de bens jurídicos da Humanidade, além de uma rigorosa aplicação do princípio ultima ratio do Direito Penal Internacional, respeitando-se principalmente os princípios da culpabilidade, legalidade e da coerência dos valores da comunidade penal internacional de forma isonômica, sem distinção de nacionalidades.

O autor dessa pesquisa propõe fortalecer o que ele chamou inversamente de “Direito Penal Internacional”. Através desse conceito surgiria uma nova perspectiva do poder, não mais restrita ao aspecto punitivo de um Estado sobre outro Estado ou sobre certos indivíduos e grupos. Diferentemente, esse novo paradigma teria preocupações protetivas que deveriam garantir o espaço de liberdade dos indivíduos, intencionando diminuir o risco de o Estado cometer crimes contra a Humanidade. No Direito Penal Internacional (que se contrapõe ao atual Direito Internacional Penal, na visão do autor) o indivíduo seria protegido das ingerências abusivas do Estado, garantindo-se nesse quadro conceitual a proteção de bens jurídicos essenciais à existência livre e responsável e também essenciais à coexistência pacífica de cada um na comunidade nacional e internacional. Nessa formulação, o Direito Penal Internacional estaria a serviço de duas dimensões: “metafísica”, buscando uma sociedade democrática, humana, livre e igualitária; e “física”, protegendo pessoas de abusos, dores e sofrimentos causados pelo exercício irregular e arbitrário do poder público.

Finalmente, no contexto crítico projetado por esse programa de pesquisa, o Direito Penal Internacional deveria dar mais atenção à garantia dos direitos individuais das vítimas e dos agressores tendo em vista permanentemente o risco de o Estado cometer crimes contra a Humanidade. Nas palavras do autor desse programa de pesquisa o Direito Penal Internacional apenas conseguirá assumir a sua função metafísica se ele se posicionar como limitador do poder punitivo do Estado, e garantir substancialmente ao indivíduo a segurança jurídica necessária ao seu amplo desenvolvimento humano (DISSENHA, 2013, p. 50). Segundo o autor, o Direito Penal Internacional efetivo é aquele que não frustra, ou seja, não deixa de fornecer ao indivíduo as condições necessárias (de segurança jurídica) às suas escolhas de autorrealização, e concretamente faz a garantia da liberdade e a proteção adequada de bens jurídicos fundamentais para a Humanidade. Tendo em vista o pluralismo democrático, condena-se o Estado autoritário que determina as escolhas que o indivíduo deve fazer, e da mesma forma, as políticas públicas policialescas que nada fazem de substancial no enfrentamento dos crimes contra a Humanidade. Nessa direção, o Direito Penal Internacional deve ser um conceito democrático vinculado aos Direitos Humanos, e precisa, portanto, ligar a noção de bem jurídico a qualquer teoria que leve em consideração a dignidade da pessoa humana e os direitos individuais (DISSENHA, 2013, p. 57). Portanto, o Direito Penal Internacional deve ser um instrumento limitador do direito de punir exercido pelo Estado, e sua fundamentação interpretativa será obviamente antropocêntrica (DISSENHA, 2013, p.60) [e não estatocêntrica]. Nas palavras do autor desse programa de pesquisa, a dignidade da pessoa humana é inspiradora do bem jurídico. No direito pátrio, por exemplo, a crença na dignidade humana se faz presente nas constituições dos Estados democráticos de direito; e no plano internacional aparece no consenso universal das Nações como valor superior, sendo uma língua franca das relações internacionais (DISSENHA, 2013, p. 60).

Com a ajuda da História esse programa de pesquisa o autor avaliou que o mito da igualdade nos tribunais penais internacionais é surreal, pois as potências mundiais pensam em defender seus interesses particulares e realizam operações militares invasivas e agressivas sem o reconhecimento primeiro das Nações Unidas. O fato lamentável é que as guerras internacionais e a produção de armas nucleares e químicas despertam apenas preocupação entre as Nações Unidas sobre certos países, enquanto sobre outros, há estranhamente um rigoroso monitoramento. Diagnosticado esse vício através da seletividade internacional, uma nova política criminal universal deverá provocar impactos no ambiente institucional da ONU, pois seus órgãos burocráticos deveriam na realidade planejar estratégias procurando evitar crimes contra a humanidade, minimizar a violência institucional do Estado e finalmente produzir fatores de proteção a serem aplicados da mesma forma entre todas as Nações Unidas. A proposta dessa pesquisa é que as regras penais continuem a ser utilizadas nos tribunais penais internacionais exercendo o poder punitivo, mas deveria existir simultaneamente um esforço entre as Nações para se implementar um programa político e jurídico complexo a fim de evitar o risco dos crimes contra a humanidade. Ganharia maior importância nessa política ideal protetiva a justiça restaurativa com seu paradigma negocial e pacifista que tem a função de reintegrar os grupos dissidentes da comunidade procurando alcançar o bem comum entre as partes envolvidas em seus territórios nacionais. Medidas restaurativas seriam prioritárias nas políticas criminais universais com o objetivo de recompor a dignidade das vítimas, cumprindo-se a obrigação dos organismos da ONU, da OEA, e de outras organizações internacionais no sentido de proteger as vítimas das irregularidades dos atos de poder do Estado. Nesse sentido, curiosamente, o Tribunal penal internacional propôs (em 2013) a criação de um fundo financeiro de reparação às vítimas.

O resultado desse programa de pesquisa argumenta que existe uma ordem penal policialesca, repressiva, individualista, reacionária e maximalista no cenário internacional e nacional que são fatores de risco alto na ocorrência de danos institucionais e da violência pública do Estado contra a Humanidade. Como tentativa de minimizar riscos de danos institucionais, propõe-se um tipo ideal de política criminal universal preocupada com a dignidade das vítimas e dos acusados. Indo mais além, busca-se nesse programa de pesquisa um Direito Penal Internacional que produza normas protetivas que diminuam o risco de o Estado exercer abusivamente o poder que gera crimes contra a Humanidade.


PROGRAMA PROCEDIMENTAL DE PESQUISA SOBRE A PERCEPÇÃO DOS OPERADORES DO DIREITO ENVOLVENDO INJÚRIA RACIAL E RACISMO

Camila Matos em sua dissertação de mestrado intitulada “A percepção da injúria racial e do racismo entre os operadores do Direito” (USP, 2016) criou um programa de pesquisa sócio jurídico a fim de conhecer a forma como as pessoas de cor negra – que reivindicam direitos como vítimas de injúria racial e de racismo - são recepcionadas pela Justiça penal brasileira.

O objetivo desse programa de pesquisa é desvendar a percepção sobre injúria racial e racismo dos operadores do Direito, considerando intrigante o baixo número de condenações no Poder Judiciário envolvendo casos de pessoas negras que se manifestaram como vítimas dessas práticas sociais desumanas. Concretamente, a tarefa desse programa crítico é desmascarar o mito da igualdade penal,confrontando a realidade com o ideal jurídico.

A autora da dissertação mencionou brevemente o estudo do sociólogo Sérgio Adorno (1995) que demonstrou que a quantidade de negros e brancos que cometem crimes no Brasil é igual; porém, os negros são mais severamente punidos do que os brancos, conforme atestam os números da população carcerária. Também a autora destacou que quando os negros se encontram na condição de vítimas há um fraco interesse das instituições públicas em resolver rapidamente o assunto; diferentemente do que acontece com as vítimas brancas.

Na metodologia desse programa de pesquisa, a História da Criminologia serve para mostrar que o Negro foi sempre tratado como indivíduo perigoso e não adaptado à civilização branca, conforme definiu o médico Nina Rodrigues, já no século XIX. O trabalho de campo e a consulta a relatórios institucionais também são indicados na pesquisa com o objetivo de verificar se as vítimas afrodescendentes recebem ou não atenção digna das instituições (especificamente Polícia, Ministério Público e Tribunais).

A metodologia desse programa de pesquisa tenta superar os limites da dogmática jurídica desenvolvendo um olhar sociológico sobre os casos penais encerrados e arquivados na cidade de São Paulo contra pretos e pardos, entre 1989 e 2011. Especificamente, a coleta dos dados oficiais aconteceu na Justiça estadual de São Paulo, sendo analisados processos de 1ª instância, classificados como injúria racial e racismo, sem segredo de justiça e arquivados.

Para coletar os dados da pesquisa, foram realizadas consultas nos portais eletrônicos da Justiça, nos Diários de Justiça e na Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Na coleta de dados também foram recuperados inquéritos policiais e posicionamentos institucionais do Ministério Público e do Poder Judiciário.

A técnica utilizada para analisar os dados coletados desenvolveu análise do discurso com o objetivo de desvendar ideologias e descobrir sentidos ocultos das práticas dos agentes do Direito. Com essa técnica, a expectativa era saber se os operadores do Direito são ou não racistas quando abordam as demandas de pessoas negras supostamente vítimas de crimes raciais.

De posse dessa metodologia, respondeu-se a uma questão relevante: seriam as percepções dos agentes públicos enviesadas igualmente pelo racismo dentro do sistema de justiça criminal?

O resultado da metodologia qualitativa desse programa de pesquisa acompanhada por uma série de dados estatísticos mostrou que os relatórios finais dos delegados rotularam no caso de São Paulo 69% das ocorrências policiais apenas como injúrias simples as agressões raciais. Essa tendência permaneceu nas demais instituições (Ministério Público e Poder Judiciário), resultando na invisibilização e atenuação da gravidade dessa demanda das pessoas de cor negra.

Conforme concluiu a autora, a minimização da gravidade das ofensas pautadas na raça e na cor se relaciona com a presença de um racismo institucional que impede a efetiva visibilização e criminalização desse tipo de delito que a cultura brasileira sempre desconsiderou (MATOS, 2016, p.172). A axiologia crítica desse programa de pesquisa propõe a igualdade racial, e condena especificamente o racismo.

A crítica do pensador Michel Foucault contribuiu na discussão ética desse programa de pesquisa sobre a cultura judiciária servindo para contraditar o discurso dominante do sistema público que apesar de ser isonomista esconde o racismo na sociedade fazendo com que as supostas vítimas negras se tornem casos raros ou desprezíveis nas estatísticas institucionais.

A teoria hermenêutica utilizada na pesquisa desenvolveu o conceito “habitus” do sociólogo Bourdieu, e ajudou a compreender como a estrutura racista foi internalizada e naturalizada pelos brasileiros. Concretamente, esse programa de pesquisa aprofunda a área de estudo da Vitimologia, e não se restringe aos documentos oficiais, trazendo à tona relatos de vítimas e de testemunhas de ações discriminatórias, através dos quais tomamos conhecimento dos termos utilizados para estigmatizar o negro como criatura inferior, atrasado, selvagem, etc.; o que contribuiu, finalmente, para expor ao leitor o grau de sofrimento das pessoas entrevistadas.

A praticologia desse programa de pesquisa demonstra que não existe democracia racial, nem igualdade penal envolvendo pessoas de cor negra no Brasil. Avalia que o racismo institucional rejeita os direitos do cidadão. Nesse caso, descobriu-se que injúrias raciais e racismo são invisíveis entre os operadores do Direito, desde a Delegacia ao Poder Judiciário. Contra esse quadro, a autora faz um procedimento programático inverso, tornando visíveis as pessoas marginalizadas pelo sistema racista.

Finalmente, o contexto intelectual delimitado pela autoria desse programa de pesquisa é resultado da combinação interdisciplinar da História com o Direito, com a Antropologia cultural e com a Sociologia. O contexto é o espaço onde circulam os discursos a favor e contra o racismo. A pesquisa concluiu que o racismo tem base ideológica numa sociedade competitiva, onde existe uma relação de poder e de dominação violenta entre grupos e classes, fazendo com que esse fenômeno desumano reapareça como ferramenta de exclusão usada estrategicamente pelos adversários; mas acima de tudo: é um vício ou comportamento condicionado, transmitido culturalmente entre gerações.


PROGRAMA PROCEDIMENTAL DE PESQUISA SOBRE EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS OU EXTRAJUDICIAIS, E A EFETIVIDADE DAS RECOMENDAÇÕES DA ONU NO BRASIL

Ingrid Vieira Leão (2011) em sua dissertação de mestrado intitulada “Execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais: efetividade das recomendações da ONU no Brasil entre 1995 e 2010” investigou 350 recomendações da ONU dirigidas ao Brasil e que tratam de temas diversos de Direitos Humanos, dentre eles, especialmente, execuções arbitrárias, sumárias e extrajudiciais. O propósito das recomendações da ONU, segundo informa a autora dessa pesquisa, é aprimorar instituições e políticas públicas ligadas aos Direitos Humanos.

A autora desse programa declarou que o objetivo do seu trabalho é identificar e avaliar as medidas realizadas ou não pelo Estado que resultaram em mortes na zona urbana e rural do Brasil e que depois foram denunciadas por diversos setores da sociedade aos órgãos internacionais de Direitos Humanos.

Esse programa de pesquisa recomenda descrever o perfil das vítimas de assassinatos com características de execução extralegal, chamando a atenção a experiência das operações policiais no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2007, onde a classe pobre, de cor negra, foi a principal atingida.

O núcleo ontológico afirma que a violência pública afeta os Direitos Humanos através dos próprios agentes estatais que deveriam ser os primeiros a proteger os indivíduos.

Em sua metodologia, a pesquisadora utilizou como fonte primária o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, da ONU, e as petições da sociedade brasileira enviadas à OEA, dando ênfase à condição das vítimas da violência e da omissão do Estado. De acordo com os relatórios da ONU esse fato ganha infelizmente aquiescência de amplos setores da sociedade brasileira seriamente iludidos pelo direito penal do inimigo.

A metodologia dessa pesquisa inclui fontes bibliográficas e entrevistas semiestruturadas com os militantes dos Direitos Humanos. Desse modo, a pesquisa mostrou finalmente que a violência pública envolve uma complexidade de fatores que afetam a dignidade humana; por exemplo, na zona rural, os conflitos agroambientais envolvem direitos econômicos, culturais, políticos e sociais, principalmente afetando quilombolas, extrativistas, indígenas, e trabalhadores rurais.

Na axiologia desse programa de pesquisa os valores contemplam a cidadania, a não discriminação, e a inclusão constitucional. Como reflexo da utilização desses valores a autora considerou que a segurança é um direito fundamental, devendo ser um serviço público prestado idealmente pelo Estado de forma igualitária para todos os cidadãos. Idealmente, inclusive, a Polícia democrática deveria seguir corretamente a Lei, sem perseguição ideológica e uso de violência desnecessária do poder.

Os dados obtidos com a investigação passaram pelo crivo da teoria do labeling approach que identificou o rótulo “inimigo” para justificar a violência pública do Estado em nome da lei e da ordem sobre determinados tipos sociais. Nessa perspectiva teórica foram categorizadas as mortes no campo e na cidade em três situações: 1- mortes por disputas de terras; 2- mortes de militantes dos Direitos Humanos; e 3- mortes de indivíduos considerados menos dignos, inimigos ou indesejáveis pelo Estado, Mídia e Sociedade, incluindo-se, concretamente pessoas negras, criminosos cruéis, crianças pobres e populações das periferias urbanas.

Na prática desse programa de pesquisa a violência, pública e privada, poderia ser monitorada com mais eficiência pelo Estado e sociedade civil levando a sério o Estatuto da Igualdade Racial onde existem parâmetros humanitários que inspiram a produção de fatores protetivos contra a violência e os danos institucionais.

Finalmente, na contextualização das vítimas do Estado, a teoria de Hannah Arendt ajudou a pesquisa a mostrar que existe um processo histórico na Modernidade que legitima e racionaliza a violência do Estado, fazendo com que a segurança pública opere de forma abusiva e autoritária para manter a paz, a tranquilidade, e a ordem social, restando finalmente a máxima de que o monopólio da força e da violência é sempre do Estado, justificando consequentemente a repressão maximalista sobre o criminoso.

Na delimitação do contexto social das vítimas da violência e da omissão do Estado foi bem-vinda a crítica do criminologista Zaffaroni, descrevendo a atuação da Polícia, da Segurança Pública e dos meios de controle em geral, onde transparece empiricamente um sistema seletivo e discriminatório sobre certos tipos de pessoas vulneráveis. Nesse contexto teórico, a autora desse programa de pesquisa admitiu que o poder da Polícia é necessário e deve atuar com rapidez sobre o crime, protegendo a vida, a comunidade, a propriedade, a ordem, entretanto, o seu poder discricionário tem causado infelizmente, um genocídio silencioso especialmente sobre a população pobre e negra do Brasil.


PROGRAMA PROCEDIMENTAL DE PESQUISA SOBRE RACISMO INSTITUCIONAL E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA A PARTIR DO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL

Tiago Vinicius André dos Santos (2012) em sua dissertação intitulada “Racismo institucional e violação de Direitos Humanos no sistema da segurança pública: um estudo a partir do Estatuto da Igualdade Racial” parte do pressuposto de que os negros são vítimas recorrentes do sistema penal e policial, e demonstra essa afirmação trazendo fatos cotidianos e históricos envolvendo a violência institucional dos agentes públicos contra a dignidade da pessoa negra.

A pesquisa usou o Estatuto da Igualdade Racial como tipo ideal de análise jurídica, onde se prevê da parte das autoridades públicas atenção às vítimas da desigualdade étnico-racial; valorização da igualdade étnica; e fortalecimento da identidade nacional.

O Estatuto declara que toda situação injustificada de diferenciação de acesso e de fruição de bens, serviços e oportunidades nas esferas públicas e privada em função de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica pode ser passível de censura jurídica.

Na seção metodológica, acompanhando a orientação do Estatuto, foram agendados os seguintes procedimentos: 1- estabelecer como parâmetro de análise o conceito de racismo institucional, onde a sociedade ou parte dela naturalizam a produção das desigualdades em suas instituições oficiais, em pleno Estado Democrático de Direito; 2- coletar dados empíricos no sentido de demonstrar que existe violência praticada pelas instituições públicas, gerando danos institucionais; 3- identificar o processo de produção de rótulos e de violências dentro das instituições, deixando de lado a análise individualista do racismo; 4- e consultar relatórios e artigos acadêmicos raros em 2012 sobre essa temática.

A observação empírica foi guiada pela tipificação ideal trazida pela teoria do Estatuto da Igualdade Racial, que em 2010 introduziu uma nova modalidade, a “discriminação indireta”, geralmente associada à discriminação e racismo praticados no interior das instituições. Na axiologia desse programa de pesquisa é destacada a integração da Democracia com os Direitos Humanos tendo em vista garantir a cidadania e a dignidade da pessoa.

Subentende-se nesse procedimento axiológico que os Direitos Humanos decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca à toda pessoa, sem quaisquer distinções de raça, cor, credo, de faixa etária, etc. São direitos comuns a todos e, portanto, são universais.

Em suma: os Direitos Humanos não se referem a uma comunidade ou Estado específicos, mas à pessoa com sua universalidade. A teoria aplicada sobre os dados empíricos segue o padrão do labeling approach. Nessa direção, a análise crítica dos dados argumenta que o sistema penal é historicamente seletivo e discriminatório no Brasil, e por essa razão devem ser denunciadas as formas de discriminação encontradas no cotidiano. A seletividade e a discriminação indireta se escondem na produção e na execução de Leis e medidas públicas que são idealmente universais e de interesse da Nação.

Especificamente, a discriminação indireta não acontece de forma imediata e seus efeitos aparecem diluídos na sociedade, dando a sensação de que não existem em grande escala e de que seriam situações acidentais ou pontuais. No dia a dia, por exemplo, as intervenções de certos agentes policiais podem evidenciar como se dá a diferenciação entre brancos e negros na abordagem das ruas, e a instituição pública ou a imprensa que contrata seguranças particulares aceita esses procedimentos como sendo normais e necessários.

Ressaltou o autor desse programa de pesquisa que existem excelentes policiais e muitos deles são comprometidos com os Direitos Humanos e se dedicam heroicamente à garantia da paz e do bem comum em péssimas condições de trabalho. Entretanto, segundo o autor, a mídia sensacionalista procura criminalizar e rotular os policiais como inimigos da sociedade.

Na prática, o problema da pesquisa é a discriminação; e a contribuição apontada na pesquisa é a educação antirracista especificamente na formação policial. Sobre a população negra, o Estatuto da Igualdade Racial prevê em seu artigo 53 que deverão ser tomadas medidas especiais para coibir a violência policial. De fato, a ação da Polícia é vista como fonte de muitos problemas, mas não se defende nesse programa de pesquisa a extinção ou condenação dessa instituição por incompetência e desumanidade dos policiais.

Finalmente, o contexto da pesquisa observa duas formas de discriminação em movimento na sociedade. Existe o racismo explícito e o racismo encoberto como é o caso do racismo institucional e estrutural que muitas vezes, mas nem sempre, ocorrem de maneira sútil e disfarçada.


RESULTADO

Os quatro autores selecionados desenvolveram diretrizes ontológicas que representam a Criminologia Crítica e investigaram principalmente a vitimização secundária que decorre da omissão ou injustiça do Estado sobre a situação dramática de vítimas que já sofreram, anteriormente, algum tipo de violência na sociedade e clamam por Justiça. Para conhecer empiricamente esse mesmo objeto de estudo (vítima) os quatro programas utilizaram uma metodologia institucionalista e interdisciplinar, embasada na ideologia liberal e antipositivista. Em seguida, os dados obtidos durante a investigação foram interpretados usando-se a teoria do labeling approach, além da teoria do garantismo penal e da teoria da violência pública (com ênfase nos danos institucionais). Os pesquisadores também fizeram críticas à violência do Estado e propuseram alternativas visando frear o maximalismo do poder bem e diminuir a intervenção excessiva do Direito Penal na sociedade. Todas as críticas e proposições dos autores foram associadas ao contexto modelado empiricamente pelo poder discricionário dos agentes públicos.


AVALIAÇÃO

A Criminologia Humanista dos quatro autores selecionados nesse estudo descreveu, de um lado, o idealismo universal da Dignidade Humana; e de outro lado, o realismo representado empiricamente pelos danos institucionais e pela violência pública do Estado.

No meio dessas duas dimensões, idealismo versus realismo, o link da Criminologia Humanista propôs que as instituições ficassem abertas à complexidade social e simultaneamente realizassem a efetivação democrática e epistemológica do projeto transcendental ou metafísico da Dignidade Humana preocupado com a efetivação dos direitos individuais, sociais e culturais em cada comunidade nacional.

A natureza prático-transcendental da Criminologia Humanista dos autores selecionados propôs ontologicamente dois vínculos importantes que integram a Criminologia com os Direitos Humanos.

“O primeiro vínculo pode ser visualizado no plano discursivo, isto é, na elaboração teórica, na compreensão e no reconhecimento dos direitos humanos como direitos e garantias das pessoas”. Esse vínculo tem conexão imediata com o garantismo penal clássico, que é “uma concepção teórica ilustrada do Direito Penal, do processo penal e da política criminal centrada na busca de limitação do poder estatal punitivo através da radicalização dos princípios da legalidade, proporcionalidade e humanidade das penas e da jurisdicionalidade dos órgãos de decisão” (CARVALHO, 2010, p. 111).

O segundo vínculo adotado pela Criminologia Humanista dos quatro autores tem natureza instrumental e projetou práticas jurídicas que “devem ser valorados em sua (in) idoneidade para impulsionar ações cotidianas de efetivação de direitos” (CARVALHO, 2010, p.111). Nessa direção, “o projeto de universalização do modelo garantista, como qualquer outra matriz inserida no projeto científico da Modernidade, estabelece, em realidade, a projeção universal der particularismos” (CARVALHO, 2010, p. 129).

A metodologia humanista dos quatro autores, que reforça a ontologia integrativa, prático-transcendental, ou sintética do ideal com o real, ofereceu condições para se produzir ferramentas e “práticas forenses voltadas à redução dos danos causados aos Direitos Humanos” (CARVALHO, 2010, p. 129).

A metodologia solicitou ao pesquisador a recusa da tradição positivista visto que ela “impõe aos intérpretes postura contemplativa e asséptica” e pressupõe a plenitude e a coerência dos ordenamentos jurídicos com a resolução das lacunas e antinomias unicamente através do raciocínio lógico (CARVALHO, 2010, p. 129).

O método de trabalho utilizado pelos programas de pesquisa juntou a abordagem processual com a propositiva. Nesse sentido, os quatro autores denunciaram o modo como são rotulados, penal e politicamente, certos indivíduos discriminados na sociedade e aplicaram sobre esse fenômeno desumano conceitos críticos que poderiam proteger o cidadão dos danos institucionais causados especificamente pela violência pública do Estado.

Em nenhum momento os quatro programas de pesquisa buscaram explicações etiológicas sobre o crime e o criminoso individual; portanto, não usaram o método causalista, muito menos aplicaram o teste da correlação estatística.

Os quatro autores desenvolveram uma atitude cética em relação aos dados estatísticos oficiais e descreveram não o crime e o criminoso como seria esperado na Criminologia biológica e penalógica positivista; mas o processo de criminalização sob determinadas condições institucionais e culturais, sobretudo manipuladas pelo maximalismo estatal embasado no Direito Penal do Inimigo.

A axiologia liberal dos quatro programas de pesquisa defendeu a humanização das instituições, a liberdade dos indivíduos e a garantia dos Direitos Humanos. Essa mesma axiologia declarou, entre outras coisas, que é imprescindível a validação de um sistema jurídico que enuncie direitos com a garantia de mecanismos processuais referentes ao acesso das pessoas à estrutura do poder público que deve ser “razoavelmente sensível às demandas e reconhecer, e não obstruir, os espaços sociais de resistência” (CARVALHO, 2010, p. 127).

Reforçando a axiologia liberal dos quatro autores, a base teórica da pesquisa foi marcada pelo labeling approach. Por esse viés, em geral, a pesquisa procurou “redirecionar esforços para compreender o Homem concreto e as instituições construídas e geridas pelo próprio Homem” (CARVALHO, 2010, p. 132).

Como resultado, os programas de pesquisa denunciaram que existem irregularidades no exercício do poder e seletividade discriminatória sobre certos tipos de pessoas rotuladas pelo Estado e Sociedade como inimigos da Pátria. Nesse sentido, a interpretação dos dados empíricos desenvolveu as diretrizes liberais do lablling approach, criticando especialmente o processo de rotulação e de punição abusiva do Estado.

,É interessante notar, nesse instante, que um dos autores manifestou insatisfação sobre a imagem distorcida projetada pela Mídia que identifica os Policiais como inimigos dos Direitos Humanos. Na prática, os quatro programas de pesquisa denunciaram a violência do Estado e a ocorrência de ações inquisitoriais dentro e fora do sistema de justiça criminal. Nessa direção, o conceito de danos institucionais do Estado foi amplamente debatido.

Os quatro programas de pesquisa também desconstruíram o mito da igualdade penal e identificaram as irregularidades de exercício do poder público, restando comprovado que violência e agressividade não estão fora do Estado, mas dentro dele. O mito da igualdade penal tem as seguintes características (BARATTA, 2002, p.90):

  • a) O Direito penal protege igualmente todos os cidadãos contra ofensas aos bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos (princípio do interesse social e do delito natural).

  • b) A Lei penal é igual para todos, ou seja, todos os autores de comportamentos antissociais e violadores de normas penalmente sancionadas têm iguais chances de tornar-se sujeitos, e com as mesmas consequências, do processo de criminalização (princípio da igualdade).

Procurando enfrentar a criminalidade do Estado de Direito nenhum autor selecionado foi buscar ajuda no abolicionismo, e no maximalismo penal. Um dos autores reconheceu, no entanto, que a Polícia e outras instituições penais são necessárias para a ordem pública; mas esse mesmo autor não deixou de denunciar que os genocídios que afetam a população negra por meio de ações policiais “pacificadoras” em comunidades controladas pelo tráfico de drogas estão sendo banalizados com a conivência do próprio Estado.

A recomendação dos quatro autores da Criminologia Humanista da USP foi no sentido de proteger os direitos das pessoas, e priorizar a “opção de não submeter cidadãos à experiência degradante do processo ou da pena, sem o rigoroso respeito às regras do jogo” (CARVALHO, 2010, p. 127). Estranhamente, no entanto, a Criminologia Humanista dos autores percebeu que as lutas pelos Direitos Humanos atualmente “recorrem a pautas criminalizadoras e ao exercício punitivo retribucionista” (CARVALHO,2010, p. 134). Sobre essa realidade, “os movimentos sociais e coletivos organizados [precisam] estar atentos às armadilhas decorrentes da demanda pela intervenção penal” (CARVALHO, 2010, p.135).

Atualmente, a Criminologia Humanista identifica o risco alto de as instituições humanitárias se transformarem em máquinas de guerra maximalistas, dando suporte a novos tipos penais e a novas formas de repressão sobre os indivíduos que violam as normas oficiais dos Direitos Humanos. Diante dessa realidade, a Criminologia Humanista ressalta que a violência institucional se expande agora em nome dos próprios Direitos Humanos, o que exige uma autocrítica entre os adeptos e a formulação de novas medidas que possam diminuir o poder desumano do Estado. Por esse motivo, a Criminologia Humanista adverte que as “necessidades de certeza e de segurança” rondam o debate dos Direitos Humanos na sociedade, dando voz ao neopositivismo, que ameaça a proposta de abertura à diversidade e ao conhecimento das diferenças e das identidades particulares (CARVALHO, 2010, p. 130).

Os quatro programas de pesquisa também delimitaram o tempo e o espaço do Direito Internacional, onde se encontram interligados os objetos de estudo da Criminologia; porém, chamou a atenção que nenhum pesquisador usou a Criminologia Crítico-marxista, embora o mito da isonomia penal e o mito da regularidade de exercício do poder tenham sido exaustivamente desconstruídos por todos os autores dentro e fora do Brasil, mas esse procedimento pertence à Criminologia Crítica de modo geral. Na contextualização, os quatro autores resgataram as conquistas históricas e internacionais dos Direitos Humanos, e demonstraram que a mentalidade racista participa no cotidiano das instituições públicas. Consequentemente, os autores reconheceram que existe um novo fator de risco ameaçando o progresso dos Direitos Humanos, o maximalismo, através do Direito Penal do Inimigo. Como reação, propuseram alguns fatores protetivos.


CONCLUSÃO

A Criminologia Humanista dos quatro programas de pesquisa desse estudo desenvolveu uma ontologia Crítico-radical. Nesse tipo de ontologia o conceito de crime e criminalidade deixam os limites tradicionais da estadualidade e libertam o criminologista das “servidões das ordens politicamente impostas” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 80). Diferentemente do que propõe a tradição positivista, onde a Criminologia fica restrita ao conceito de crime do Direito Penal, verifica-se que a partir da ontologia Crítico-radical o pesquisador procura conhecer a vítima e os criminosos no plano da transestadualidade, analisando não apenas os crimes, mas também a danosidade social com ênfase nos danos institucionais. A respeito da Criminologia Crítico-radical, Dias & Andrade (1997, p. 80) afirmaram que ao lado do que dispõe a Penalogia nacional, não se estranhará que ao lado do crime clássico (homicídio, violação, ofensas corporais) a Criminologia Radical tenda a privilegiar crimes que afetam o sentimento da Humanidade, como racismo, a desigualdade entre os sexos e todas as formas de discriminação e exploração. Essa forma de abordagem extrajurídica da criminalidade começou com a Criminologia Liberal, principalmente com o especialista Sutherland, em sua teoria do colarinho branco, que observou que além de ser um comportamento proibido pelo Estado o crime apresentaria conteúdo ético-político. Segundo o mesmo especialista, “só um conceito de crime assente no elemento da danosidade social tornaria possível estender o campo da criminologia às práticas ilegais ou imorais do mundo do grande negócio” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 76). Os criminologistas radicais “recusam [...] as definições que apelam para os sentimentos comuns, as expectativas comuns, os sentimentos ou estados fortes da consciência moral; porque todas elas [...] obedecerão a uma perspectiva epistemológica positivista: - a aceitação da realidade social vigente como a única pensável” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 79).

Também ficou evidente nos quatro programas de pesquisa a utilização de uma metodologia institucionalista; através da qual os autores investigaram os processos de rotulação e criminalização considerando especialmente o fato de que os discursos das instituições projetam um mito de isonomia e um mito da regularidade de exercício do poder, restando comprovado que existem vícios estruturais que se confundem com a cultura nacional. Nessa perspectiva crítica, ao invés de perguntarem “por que as pessoas cometem crimes?, os quatro autores perguntaram, implicitamente “quais são os critérios que presidem à seleção e estigmatização de certas pessoas e quais são as consequências desta estigmatização do ponto de vista de uma carreira delinquente” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 160). A metodologia aplicada priorizou as relações institucionais. A esse respeito, Dias & Andrade (1997, p. 160) esclarecem que essa abordagem “se contrapõe ao modelo estático da criminologia tradicional”. E um resultado positivo dessa metodologia é “alargar o elenco de personagens responsáveis pelo crime, elevando as instâncias formais de controle à categoria de fatores criminógenos” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 160).

Outro instrumento marcante da metodologia utilizada pelos quatro programas de pesquisa desse estudo foi o interacionismo simbólico que focalizou a “delinquência secundária”, ou seja, a delinquência que resulta do processo causal desencadeado pela estigmatização. Nesse ponto, é necessário repetir que o interacionismo simbólico não se propõe a resolver a questão da causalidade, e paradoxalmente introduz novas causas (processuais) no debate da delinquência, por exemplo: estigmatização e injustiça.

A interdisciplinaridade entre Direito Penal e Política Criminal também foi aprofundada metodologicamente entre os quatro programas de pesquisa e reforçou a análise axiológica já expressa pelos especialistas Dias & Andrade (1997, p. 112) que alertaram que não é correto “reduzir a Criminologia à categoria de ciência empírica [...]; é todavia, seguro que as proposições políticas emergentes da criminologia terão sempre a medida e a vis que lhes advêm das realizações conseguidas no plano empírico”. Completando esse ponto de vista, os dois autores portugueses lembraram em sentido contrário que a “constelação axiológica” dá impulso à Criminologia para agir e serve também “como fonte onde radica a legitimidade do poder que exprime” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 112). Os mesmos autores concluíram dizendo que “é a partir do que é que a Criminologia avança juízos de dever-ser; e é a partir do que deve ser que a política criminal se propõe a transformar o que é” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 113).

A axiologia política declarada pelos quatro programas de pesquisa foi claramente antipositivista e liberal e nessa direção os pesquisadores procuraram “racionalizar”, humanizar e “eficientizar” as instituições além de refutarem dois mitos institucionais. Conforme dito anteriormente, a Criminologia Crítico-liberal surgiu com Beccaria, na Itália; Bentham, na Inglaterra; e Feuerbach, na Alemanha. No século XVIII, e atualmente através dos neobeccarianismo, ou neogarantismo, os liberais defendem um novo sistema criminal com o reforço da vigilância contra o autoritarismo e a inclusão radical de princípios humanistas no Direito Penal, procurando principalmente superar a justiça de gabinete, o processo inquisitorialista, a prática da tortura, etc. A preocupação essencial dos garantistas é a salvaguarda dos direitos do imputado por meio da atuação de um juiz obediente à Lei, e que julgue o processo de modo imparcial. Na década de 1930, o salto quântico da Criminologia Liberal aconteceu com as teorias do Conflito desenvolvidas pela Escola de Chicago, especialmente agrupadas no termo labeling approach, rejeitando o idealismo penal e desenvolvendo uma postura realista e cética sobre o sistema de justiça criminal. Os liberais da Escola de Chicago contestaram substancialmente o dogma da isonomia; e em seu lugar enfatizaram que existe flagrante irregularidade no exercício do poder associada ao contexto de desigualdades sociais e penais. Os sociólogos do labeling approach, por exemplo, passaram a investigar a formação da identidade desviante, destacando-se em suas análises o “delinquente secundário” devido à reação desse sujeito contra as etiquetas “criminoso” e “doente mental” emitidas arbitrariamente pelo grupo, Estado ou sociedade.

Reforçando a ideologia liberal, os quatro programas de pesquisa anteriores interligaram os objetos de estudo tradicionais da Criminologia usando como fio condutor a teoria do garantismo ao lado da teoria da violência pública, que juntas animaram a dinâmica dos objetos de estudo e se comportaram por essa razão como duas teorias ontológicas. Especificamente: a teoria do garantismo penal, apesar de marcada pelo ideário iluminista e naturalmente pela pretensão universalista típica dos paradigmas científicos, apresenta no contexto global de violações aos direitos humanos interessante mecanismo de fomento à minimização dos poderes punitivos. Desta maneira, essa teoria visualiza a otimização dos direitos fundamentais desde a perspectiva crítica da dogmática jurídica; sendo assim, ela percebe o sistema normativo como instrumental eminentemente prático que deve ser pensado e desenvolvido para a resistência ao inquisitorialismo nas práticas judiciais e administrativas cotidianas (CARVALHO, 2010, p.127). A teoria da violência pública, ao mesmo tempo, permitiu aos programas de pesquisa analisarem os danos institucionais, acompanhando a perspectiva defendida pelos criminologistas radicais que consideram que há comunidades étnicas, nacionais, religiosas ou raciais que são vítimas; e inversamente há formações políticas que podem ser qualificadas como criminosas (DIAS & ANDRADE, 1990, p. 80). Trilhando essa perspectiva crítica, os criminologistas radicais apontam que o Estado pode ser um criminoso e por isso pode praticar violência pública. Compartilhando essa mesma abordagem que denuncia o potencial criminoso do Estado, Salo de Carvalho (2010, p. 23) afirmou que “a postura comprometida com os direitos e garantias das pessoas pressupõe inexoravelmente a desconfiança do agir dos aparatos punitivos, vista a tendência sempre presente e real do abuso do poder pelos atores que o detêm”.

Fazendo parte da Criminologia Radical os quatro programas de pesquisa desse estudo utilizaram também, exaustivamente, a teoria do labeling approach , considerando, por exemplo, que “a identidade, o self, não é um dado, uma estrutura sobre a qual atuam as causas endógenas e exógenas, mas algo que se vai adquirindo e modelando ao longo do processo de interação entre o sujeito e os outros (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 51). Além do mais, o labeling approach usado pelos quatro autores “partiu do princípio de que a deviance não é uma qualidade ontológica da ação, mas, antes, o resultado de uma reação social, e de que o delinquente apenas se distingue do Homem normal devido à estigmatização que sofre” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 49).

Em termos práticos, os quatro programas de pesquisa elaboraram uma crítica radical sobre o maximalismo penal, o que exigiu dos pesquisadores alternativas visando à garantia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, os programas de pesquisa: 1- propuseram a redução dos danos decorrentes da punitividade, 2- defenderam as garantias individuais e 3- ressaltaram a “observância dos postulados constitucionais de proporcionalidade, razoabilidade e proibição do excesso (CARVALHO, 2010, p. 153).

No debate político e penalógico dos quatro programas de pesquisa criticou-se intensamente o Direito Penal do Inimigo. Sobre esse direito autoritário, Zaffaroni & Oliveira (2010, p. 117) informam que o autor Jakobs, nos anos de 1990, “pretendeu que a distinção entre um direito penal do cidadão e outro do inimigo deveria ser entendida em chave filosófica”. Nessa perspectiva, “quem assalta o banco para gastar com prostitutas e álcool seria um cidadão; mas quem o faz para solver uma resistência ao Estado seria um inimigo”.

Em desfavor do Direito Penal do Inimigo, a Criminologia Humanista desse estudo alertou sobre o avanço do maximalismo penal anunciando que “qualquer ser humano que seja inadequado à moral punitiva ou à estética criminológica; [...] objetificado pelo estigma periculosista” poderá ter os seus direitos fundamentais violados facilmente pelo Direito e pela Política (CARVALHO, 2010, p. 135).

Finalmente, foi consensual entre os quatro programas de pesquisa o reconhecimento do mesmo contexto institucional envolvendo vítimas e agressores. Nessa direção, ficou patente entre os quatro programas de pesquisa o poder discricionário abusivo da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Segundo Dias & Andrade (1997) a Polícia tem livre escolha dos critérios que servem para localizar e enfrentar a criminalidade. Nesse sentido, a Polícia pode pegar carona em estereótipos racistas que ajudam a desenhar o perfil do pré-criminoso, e aborda principalmente pessoas de cor negra, mesmo não havendo indícios de terem praticado algum delito. Também um jovem de cor branca bem-vestido andando em bairro de periferia despertará suspeita, podendo ser no olhar policial usuário ou traficante de drogas. Além disso, a Polícia pode investigar sem nenhuma formalidade o passado da vítima a fim de saber se ela é usuária de drogas, se é conhecida na vizinhança, ou se goza de boa ou má reputação, etc. O dia a dia mostra também que a Polícia tende a ser mais compreensiva e tolerante com aqueles suspeitos que manifestam humildade e respeito pela autoridade policial, ou com aqueles indivíduos que demonstrem vontade de confessar o delito praticado. Em outra situação, jovens que se mostrem arrependidos pela infração cometida, ou que demonstrem medo da punição, e respondem às perguntas, educadamente, dizendo sempre “- sim senhor; não senhor!”, serão encarados como indivíduos recuperáveis; porém, em situação oposta, esse mesmo jovem ou cidadão ao desafiar a autoridade da Polícia pode abalar a autoestima do agente e causar alguma reação violenta da sua parte. Admite-se também que a Polícia precisa “meter a mão na massa”, por isso comete excessos contra o inimigo oculto, pois dispõem muitas vezes de frações de segundos para reagir aos ataques criminosos. Dias & Andrade (1997) consideraram por essas e outras razões que a figura do policial desperta sentimentos contraditórios. Uma parcela da sociedade considera o policial um super-herói, outra parcela o identifica como usurpador de direitos humanos. O Ministério Público possui também poder discricionário. Essa instituição deve dar uma resposta formal às demandas da sociedade, entretanto, seu poder se alargou tanto que é possível verificar a sua intervenção máxima na confissão da culpa, ou na condução de acordos entre as partes, ou na recomendação de certas políticas públicas, ou ainda na condução das delações premiadas que fazem o promotor parecer um juiz atuando fora do Tribunal. No Poder Judiciário, juízes e advogados também desenvolvem critérios próprios na caracterização do criminoso e da vítima. A Criminologia Crítica considera sobre essa situação que mesmo dentro da legalidade existem influências pessoais, estereótipos, ideologias e teorias diversas que aumentam a imprevisibilidade do processo judicial. A esse respeito, é oportuno lembrar Ronald Dworkin, em sua obra “Império do Direito”, que identificou três modos diferentes de produção de uma sentença: convencionalista, pragmatista e integralista. O aspecto mais revelador do poder discricionário do juiz aparece quando os mesmos temas ou fatos são julgados com argumentos substancialmente adversos pelo mesmo juiz, o que comprova a hipótese de que o mesmo tipo penal varia na percepção dos notáveis.

As pesquisas institucionais da Criminologia Crítica mostram nessa direção que existem fatores ideológicos, sexuais, morais, raciais, etc., orientando a aplicação da Lei nos Tribunais, confirmando a existência do mito da isonomia penal.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Criminologia, direitos humanos e procedimentos epistemológicos. O pensamento crítico e seus fundamentos programáticos nas teses e dissertações da Faculdade de Direito da USP. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7597, 19 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100689. Acesso em: 17 maio 2024.