O federalismo e os mecanismos institucionais de política pública de resposta à covid-19

22/01/2023 às 17:51
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O federalismo brasileiro enfrentou desafios na gestão da pandemia, destacando a descoordenação entre governo central, estados e municípios.

INTRODUÇÃO

O federalismo pode ser conceituado, segundo Coser (2008, p. 1) "como um sistema de governo no qual o poder é dividido entre o governo central (a União) e os governos regionais."

A estrutura do poder decisório foi alterada com a nova dinâmica de centralização fiscal na União que sucedeu à derrocada dos governos estaduais ocorrido na década de 1990 em razão dos ajustes fiscais.

A inconstância do grau de centralização dentro do sistema federativo retrata a correlação entre os interesses dos entes subnacionais em angariar recursos no âmbito da União e àquilo que Ribeiro (2018, p. 1779) indica como "entrelaçamento entre a matriz horizontal (separação entre poderes executivo, legislativo e judiciário) e a vertical (divisão territorial entre a União e entes subnacionais)".

Segundo Abrucio (2020, p. 666), "no estudo das políticas públicas no federalismo, a coordenação intergovernamental é fundamental", cabendo destacar que a coordenação intergovernamental também se mostra salutar no desenvolvimento e efetivação de políticas públicas dentro do sistema de federalismo governamental.

No Brasil, a pandemia da Covid-19 evidenciou o tensionamento de forças entre os entes subnacionais e governo central, tudo dentro de um contexto de evidente avanço da doença pelo país.

Assim, o presente trabalho tem por espeque abordar o protagonismo do federalismo diante do desenvolvimento de mecanismos institucionais de efetivação de políticas públicas de combate à Covid-19, tudo diante da dificuldade de equacionar a relação de forças que envolvem a autonomia e a interdependência, tudo dentro do contexto da disparidade entre o federalismo dual e o federalismo cooperativo.


O FEDERALISMO NO CONTEXTO INSTITUCIONAL DE COMBATE À COVID-19

Conforme leciona Rodden (2005, p. 17):

O federalismo não é uma distribuição particular de autoridade entre governos, mas sim um processo - estruturado por um conjunto de instituições - por meio do qual a autoridade é distribuída e redistribuída. O federalismo remete-se à palavra fedus, no latim, que significa "contrato". A palavra veio a ser usada para descrever acordos cooperativos entre estados, geralmente para finalidades de defesa. Acordos formais e contratos implicam reciprocidade: qualquer que seja o propósito, os envolvidos devem cumprir alguma obrigação mútua. Se o governo central pode obter tudo o que deseja dos governos locais por meio de simples atos administrativos, faz pouco sentido encarar ambos como engajados em uma relação contratual ou federal. O federalismo significa que para algum subconjunto das decisões ou atividades do governo central, torna-se necessário obter o consentimento ou a cooperação ativa das unidades subnacionais.

A gravidade da Covid-19 tornou necessária a cooperação entre os entes federados, haja vista a complexidade dos atos decisórios decorrente do envolvimento direto de todos os entes federativos e seus respectivos órgãos.

Dentro desse panorama de complexidade institucional, ganha relevância o Sistema Único de Saúde (SUS), o qual foi criado pela Constituição Federal de 1988 (CF/88) e tem por objetivo a universalização das ações e serviços de saúde e a disponibilização integral de meios para prevenir e curar os diversos tipos de doenças.

Dessa forma, o SUS se mostra como importante mecanismo institucional para desenvolvimento de ações coordenadas de combate à Covid-[19].

No entanto, a pandemia tornou evidente a combinação da lógica federativa compartimentalizada, autocrática e confrontadora (ABRUCIO, 2020, p. 669), na medida em que disputas políticas demonstraram a fragilidade do modelo dual de federalismo, com ênfase para a descentralização de responsabilidade e de participação da União no diálogo com Estados e Municípios.

No caso do Brasil, o federalismo se mostrou desraigado daquele conceito ligado ao consentimento e cooperação ativa das unidades subnacionais (Rodden, 2005, p. 17), haja vista que, à medida que a Covid-19 se espalhava, a correlação de forças endógenas e exógenas tornava-se evidente dentro do contexto de federalismo dual, com demonstração pública de tensão entre os órgãos do próprio governo central e entre este e governadores e prefeitos.

O conflito federativo se mostrou às claras. Segundo Abrucio (2020, p. 671),

A descoordenação intergovernamental no enfrentamento da COVID-19 aumentou com o conflito entre presidente e governadores, o que ficou explícito na decisão sobre o estabelecimento do isolamento social. Nesta questão, três fatores confluíram: 1) opção do projeto federativo bolsonarista pelos devolution powers; 2) arcabouço de regras da CF/88 e seu blend de cooperação e autonomia; 3) legado prévio de políticas públicas. Numa federação como a brasileira, com seu sistema político altamente consensual, tal discussão chegou ao STF.

A ausência de mecanismos institucionais direcionados para a efetivação da forma de federalismo colaborativo enfraqueceu o poder decisório horizontal e vertical. Para Abrucio (2020, p. 672):

A redução conjuntural do papel da União aumentou a descoordenação intergovernamental e a desigualdade entre estados e municípios. O conflito intergovernamental dificultou a tomada de decisões nacionais, como normas sobre isolamento social, distribuição de recursos e equipamentos médicos. Nessa situação, o Consórcio do Nordeste e estados como São Paulo e Maranhão tomaram decisões que geram competição horizontal e vertical por escassos insumos para o combate à COVID-19. Mesmo no que se refere a outras políticas, como a econômica e a educacional, não ocorreram articulações federativas para atuar contra a pandemia.

A ausência de cooperação entre os entes federados não trouxe nenhuma consequência negativa para o campo normativo, haja vista que diversas normas foram lançadas no mundo jurídico para fazer frente à pandemia que se alastrava, como se observa na lista a seguir, contendo leis, decretos e portarias do nível federal:

Leis

  • LEI Nº 6 259, DE 30 DE OUTUBRO DE 1975: dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6259.htm

  • LEI Nº 6 437, DE 20 DE AGOSTO DE 1977: configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6437.htm

  • LEI Nº 8 080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990: dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm

  • LEI Nº 13 979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020: dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm.

Decretos

  • DECRETO Nº 78 231, DE 12 DE AGOSTO DE 1976: regulamenta a Lei nº 6 259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D78231.htm

  • DECRETO Nº 7 616, DE 17 DE NOVEMBRO DE 2011: dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN e institui a Força Nacional do Sistema Único de Saúde – FN-SUS. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7616.htm

  • DECRETO Nº 10 212, DE 30 DE JANEIRO DE 2020: promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia-Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10212.htm

  • DECRETO Nº 10 211, DE 30 DE JANEIRO DE 2020: dispõe sobre o Grupo Executivo Interministerial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional – GEI-ESPII. Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10211.htm

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Portarias

  • PORTARIA Nº 188, DE 03 DE FEVEREIRO DE 2020: declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional – ESPIN em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019- nCoV). Link: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388

  • PORTARIA Nº 264, DE 17 DE FEVEREIRO DE 2020: altera a Portaria de Consolidação nº 4/GM/ MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir a doença de Chagas crônica, na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. Link: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt0264_19_02_2020.html

  • PORTARIA CONJUNTA Nº 1, DE 30 DE MARÇO DE 2020: estabelece procedimentos excepcionais para sepultamento e cremação de corpos durante a situação de pandemia do coronavírus, com a utilização da Declaração de Óbito emitida pelas unidades de saúde, apenas nas hipóteses de ausência de familiares ou de pessoas conhecidas do obituado ou em razão de exigência de saúde pública, e dá outras providências.

Entretanto, não obstante os instrumentos normativos disponibilizados, o sistema federativo se traduziu num verdadeiro empecilho para a consolidação do modelo colaborativo, haja vista a dificuldade para o distencionamento das forças políticas que agiam para fazer prevalecer, cada qual, seu ponto de vista e suas diretrizes para o enfrentamento à Covid-19.

No caso do enfrentamento à Covid-19, a política pública deveria ter sido considerada aquela que para Casagrande & Freitas Filho (2020, p. 33) caracteriza-se como:

processos decisórios multidisciplinares, que são levados a cabo em ambiente de ação governamental, cuja natureza é fragmentária. Os processos realizados no âmbito das políticas públicas são dependentes de um grau básico de sinergia institucional para que se atinja um mínimo de efetividade de resultado.

Portanto, para a implementação de políticas públicas num contexto de pandemia, não se mostra prudente abrir mão do federalismo cooperativo.


CONCLUSÃO

A crise sanitária trouxe à tona as implicações do federalismo dual dentro do contexto de necessidade de inter-relação das instituições e atores políticos para implementação de políticas públicas em casos de complexidade situacional.

O aspecto pedagógico das falhas detectadas pode minimizar as consequências da crise sanitária para a área social e econômica, desde que os atores políticos se abstenham de rivalizar nas cercanias das instituições democraticamente consolidadas.

Assim, o descompasso federativo deve ser remediado através da cooperação governamental endógena e exógenas, sempre com a finalidade de fortalecimento das instituições.


REFERÊNCIAS

ABRUCIO, Fernando Luiz et al . Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro , v. 54, n. 4, p. 663-677, Aug. 2020 . Available from <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122020000400663&lng=en&nrm=iso>. access on 30 Oct. 2020. Epub Aug 28, 2020. https://doi.org/10.1590/0034-761220200354.

COSER, Ivo. O conceito de federalismo e a idéia de interesse no Brasil do século XIX. Dados, Rio de Janeiro , v. 51, n. 4, p. 941-981, 2008 . Available from <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582008000400005&lng=en&nrm=iso>. access on 30 Oct. 2020. https://doi.org/10.1590/S0011-52582008000400005.

RIBEIRO, José Mendes et al . Federalismo e políticas de saúde no Brasil: características institucionais e desigualdades regionais. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 23, n. 6, p. 1777-1789, jun. 2018 . Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232018000601777&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 30 out. 2020. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07932018.

RODDEN, Jonathan. Federalismo e descentralização em perspectiva comparada: sobre significados e medidas. Rev. Sociol. Polit., Curitiba , n. 24, p. 9-27, June 2005 . Available from <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000100003&lng=en&nrm=iso>. access on 30 Oct. 2020. https://doi.org/10.1590/S0104-44782005000100003.

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Sobre o autor
Luiz Cesar Barbosa Lopes

Superintendente do Ibama no Estado do Ceará de 05/2021 a 12/2022; Secretário Executivo da Controladoria Geral do Município de Goiânia de 01/2023 a 07/2023; Mestre em Administração Pública pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, Ensino e Pesquisa - IDP; Pós-Graduado em Compliance e Integridade Corporativa pela PUC/Minas; Consultor Político e Eleitoral; Pós-graduado em Direito Penal; Especialista em Direito Eleitoral.

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