"O Estado é laico, mas não é ateu". Será?

Texto de opinião à luz da Constituição Federal

05/11/2018 às 20:14
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O chavão citado no título é proferido rotineiramente, como forma de justificar a proximidade dos exercentes dos cargos públicos com denominações religiosas. Mas será que ele é verdadeiro?

Diante dos últimos acontecimentos, sobretudo posteriores ao resultado da eleição presidencial, tenho visto essa afirmação pulular novamente nas redes, a qual não é nova é já foi propalada por Ministro do TST e até por professor da moda.

Considerando que essa assertiva envolve duas questões que me são caras (religião e Estado), gostaria de tecer alguns comentários, sem pretender esgotar o tema, mas para ir além da esfera do chavão.

De maneira bastante resumida, laico é aquele Estado que não professa qualquer religião em caráter oficial ou institucional, nem impõe qualquer tipo de restrição à prática privada de seus cidadãos.

Essa é a opção adotada pelo Brasil. Conforme se extrai da leitura do texto da Constituição, é assegurada a liberdade de crença e de culto, sendo vedado qualquer tipo de discriminação por esses motivos.

Além disso, a assistência religiosa em entidades civis ou militares de internação coletiva também é garantida. (art. 5º, VI, VII e VIII).

Por outro lado, a Constituição veda aos entes federativos (união, estados e municípios), que compõem o Estado, a promoção e financiamento de cultos religiosos, ou que criem qualquer tipo de embaraço ao funcionamento destes (art. 19, I).

Donde se extrai, portanto, que não cabe ao Estado subvencionar ou proferir qualquer tipo de crença, tampouco podendo impedir quaisquer práticas religiosas.

Assim, o exercício de qualquer religião é livre para os cidadãos, mas vedado para o Poder Público, o qual deve se eximir destas práticas e apenas atuar para assegurar a liberdade dos indivíduos.

O conceito de Estado está ligado à existência de um poder político organizado e soberano, exercido em um determinado espaço geográfico, que é composto por um agrupamento de pessoas, as quais se ligam por diversos motivos (étnicos, culturais, religiosos e etc).

Assim, o Estado é composto de I) Território, II) Soberania, III) Nação (povo), cujo poder jurídico-político (Estado) resultante é o responsável por sua organização.

Levando em consideração os elementos que compõem o Estado, apenas a Nação (povo) é que está relacionada com a religião, podendo a união dos cidadãos resultar ou não desta.

Não me parece que o povo brasileiro se identifique como nação em função da religião, sobretudo diante do crescimento das igrejas neopentecostais, que revela uma espécie de “migração” de um credo para outro.

Logo, ainda que a maioria da população professe uma crença pautada na existência de um demiurgo (portanto, não ateia) é vazio de sentido falar em Estado ateu, na medida em que este não é resultado exclusivo da existência de seus cidadãos e que, no caso brasileiro, sequer a religião é o motivo determinante para a união do povo enquanto nação.

É preciso considerar, ainda, a existência de diversas religiões as quais não se pautam na noção de um demiurgo (budismo, por exemplo) as quais são ateias por definição (do grego "atheos" = sem deus).

Logo, dizer que o Estado não é ateu significa, "contrario sensu", que essas religiões não têm condição de existência nesse Estado ou que seriam incompatíveis com ele o que, a meu ver, não se coaduna com a noção de Estado laico e pode ainda resultar em discriminação de seus praticantes (vedada pela Constituição Federal).

Acredito ser importante frisar que a garantia do Estado Laico demanda dos órgãos institucionalizados, não apenas uma postura de abstenção com relação a práticas religiosas, mas também ativa, para garantia da verdadeira liberdade de crença de seus cidadãos e de não discriminação.

Assim, o Estado laico assegura a todos os seus membros o exercício da religião que melhor aprouver ao individuo, não podendo essa entidade jurídico-política (Estado) ser confundida, ou restringida, com seu povo, visto este ser apenas um dos seus elementos constitutivos.

E, ainda que este seja de maioria não ateia, isto não é fundamento idôneo para que os poderes instituídos (executivo, legislativo e judiciário) e entes federativos prefiram uma religião a outra, o que é incompatível com o texto constitucional.

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