Anaximandro é o primeiro filósofo do Direito?

05/12/2020 às 01:11
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Um breve ensaio com a proposta de discutir sobre a fundação da "filosofia do direito" a partir da leitura do filósofo Martin Heidegger e do seu diálogo com pensadores pré-socráticos.

No texto "A frase de Anaximandro", de autoria do filósofo alemão Martin Heidegger, lemos que a seguinte citação do pensador pré-socrático é "a mais antiga frase do pensamento ocidental". Em duas traduções:

"De onde as coisas têm seu nascimento, para lá também devem afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo". (tradução do filósofo e filólogo alemão Friedrich Nietzsche)

"Ora, aquilo de onde as coisas se engendram, para lá também devem desaparecer segundo a necessidade; pois elas se pagam umas às outras castigo e expiação pela sua criminalidade segundo o tempo fixado". (tradução do filólogo alemão Hermann Diels)

"Injustiça", "criminalidade", "castigo", "expiação" são hoje objetos da filosofia do direito. Tais palavras aparecem nas respectivas traduções. Como se trata, supostamente, da "mais antiga frase do pensamento ocidental", poderíamos concluir que esta seria a reflexão que inaugura a filosofia do direito? Ou seja, Anaximandro seria o primeiro filósofo do direito? Trata-se de uma conclusão precipitada.

O próprio Heidegger nos ensina que há diferentes "dimensões do pensamento". Argumento que está no seu extraordinário ensaio "Que é isto - a filosofia?", pronunciado em agosto de 1955. Há, por exemplo, "injustiça" (adikía) na frase de Anaximandro, mas ele, como todos os pré-socráticos, está numa dimensão de pensamento distinta em relação a Platão, Aristóteles e posteriores.

Em "Que é isto - a filosofia?", aprendemos que o corresponder deste pensador pré-socrático vai em direção ao lógos, ou seja, à língua grega. A palavra "philósophos", diferente do que acredita o "senso comum", não se refere a "filosófico" ou "amante da sabedoria", pelo menos não com o sentido que entendemos hoje. De fato, o termo "philos" remete a alguém "que ama", mas Heidegger observa que "philos" ou, mais corretamente, "philein" (que compõe a palavra "philósophos") tem o sentido de "falar assim como o lógos fala". Este é um corresponder que se harmoniza com o "sophón" (philósophos).

Mas o que é "sophón"? "O ser é o ente" ou "todo ente é no ser". Todo remete à totalidade. Em "Que é isto - a filosofia?", Heidegger diz: "se escutarmos de uma maneira grega uma palavra grega, então seguimos seu legein, o que expõe sem intermediários. O que ela expõe é o que está aí diante de nós". Corresponder ao lógos implica em estar de acordo com o sophón, o Hèn Pánta ("um (é) tudo"). Este é o philósophos.

Tanto Nietzsche quanto Diels traduzem e intepretam a frase segundo o paradigma que é oriundo de uma dimensão de pensamento distinto dos pré-socráticos: a filosofia de Platão e de Aristóteles. Nietzsche, por exemplo, não é um "philósophos", mas um filósofo.

Platão e Aristóteles inauguraram uma nova dimensão do pensamento que se define, basicamente, a partir do "singular aspirar pelo sophón" (philosophía), em vez de "acordo com o sophón" (philósophos). O aspirar se manifesta na seguinte questão: "que é o ente, enquanto é?"

A noção de "(in) justiça" para Anaximandro não deve ser compreendida segundo o paradigma que surgiu do "singular aspirar pelo sophón". Na obra "Curso de filosofia do Direito", de Oliveiros Litrento, há uma breve explicação sobre a "justiça" (díke) segundo o pré-socrático: "reintegração na unidade do cosmos, restabelecendo, como consequência, a lesão sofrida pela natureza".

No texto de Heidegger, mencionado logo no início, aprendemos que "injustiça" (adikía), "justiça" (díke) e "expiação" (tísis), na frase original (língua grega antiga) de Anaximandro, não se enquadram numa disciplina específica como a "filosofia do direito", pois possuem significação que remete a uma amplitude, em vez de estar delimitada numa especialidade. Mas esta significação ampla se distingue do vago, pois guarda "o que precursoramente foi pensado". Por causa disto, estas palavras são capazes de mostrar "a múltipla totalidade no acontecer de sua harmoniosa unidade" (confiram o texto "A frase de Anaximandro"). Isto está de acordo com o que Heidegger diz sobre o sophón: "o ser é o recolhimento - lógos".

Anaximandro não foi o primeiro filósofo do direito, porque a filosofia do direito se situa numa dimensão de pensamento distinta da dimensão pré-socrática.

Sobre o autor
Roni Pereira

Jornalista com interesse em temas jurídicos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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