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Condição de elegibilidade: potencialidade para substituição da ação pela fabricação

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19/01/2024 às 09:33
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A obrigatoriedade de filiação partidária para candidatura pode levar à substituição da ação política pela fabricação, segundo Hannah Arendt.

Resumo: No Brasil, é condição de elegibilidade a obrigatoriedade de filiação partidária. Isto é, a norma constitucional prevê, a quem pretende candidatar-se a um cargo político eletivo, a exigência de um vínculo partidário. Nesse contexto, inexiste a possibilidade de uma candidatura avulsa ou independente, por meio da qual se admitiria a qualquer cidadão concorrer a cargo político independentemente de filiação partidária. A regra é que após filiar-se a um determinado partido político, o filiado deve agir segundo as normas de seu estatuto e as decisões adotadas pelo grupo a que pertence. Questiona-se, então, se o instituto de obrigatoriedade de filiação partidária não acaba consequentemente por fazê-lo sujeitar-se a ideais e a ações predeterminados com vistas a um fim almejado mediante a subsunção da ação à categoria de meios e fins. Nesse sentido, a hipótese a ser desenvolvida visa a verificar se a exigência constitucional de filiação partidária como condição para candidatura a cargo eletivo e, por conseguinte, a sujeição do filiado às regras do estatuto e às decisões adotadas pelo partido a que está filiado têm a potencialidade de provocar a substituição da ação política pela fabricação, segundo o exposto por Hannah Arendt (1906-1975) no capítulo relativo à Ação, em sua obra A condição humana. É possível concluir provisoriamente que a substituição da ação pela fabricação, ou, ainda, o exercício da ação em termos de produção/fabricação passa a ser algo quase natural em nosso sistema político. A imposição de filiação partidária como condição a candidatura a cargo público eletivo acaba por conduzir o indivíduo a agir segundo a categoria de meios e fins à imagem de um espaço público construído, de um objeto fabricado.

Palavras-chave: Hannah Arendt; Ação política; Fabricação; condição de elegibilidade.


O presente trabalho tem como propósito refletir sobre dois temas:

  • O primeiro diz respeito à condição de elegibilidade, isto é, à obrigatoriedade de filiação partidária: uma condição imposta por nossa Constituição Federal (1988) a todo cidadão que pretende candidatar-se a cargo público eletivo (cargo político).

  • O segundo tema diz respeito à substituição da ação pela fabricação, sobre o qual escreve Arendt (1906-1975) no item 31, do capítulo V, de A condição humana (1958).

Nesse contexto, a hipótese a ser desenvolvida visa a verificar se a exigência constitucional de filiação partidária como condição para candidatura a cargo eletivo no Brasil e, por conseguinte, a sujeição do filiado às regras do estatuto e às decisões adotadas pelo partido a que necessariamente se vinculou têm a potencialidade de provocar a substituição da ação pela fabricação, segundo o exposto por Hannah Arendt em A condição humana, nos capítulos relativos à obra e à ação (IV e V). Para tanto, far-se-á uma abordagem do que denomina Arendt de “as articulações mais elementares da condição humana”1, das atividades que tradicional e correntemente “estão ao alcance de todo ser humano”2: o trabalho, a obra e a ação. Atividades que compõem a vida ativa, isto é, o mundo externo ao indivíduo. E, por sua vez, são fundamentais à condição humana. Em seguida, far-se-á referência à obrigatoriedade de filiação partidária e suas implicações em relação às atividade da ação e da obra.

Arendt concebe que a atividade do trabalho corresponde à vida biológica do homem e consiste em uma resposta à condição da própria vida. No entender de Correia, a “atividade do trabalho é uma resposta ao mero estar vivo que partilhamos com todos os viventes”3, com o propósito de sobrevivência. Ele caracteriza-se por ser uma experiência corporal, decorrente do metabolismo do corpo com a natureza, que ocorre de forma cíclica e repetitiva, impelida pela necessidade de subsistência, e por isso, de consumo.

De outro lado, há a obra e a ação, sobre cujas características refletir-se-á no presente artigo. Segundo Arendt, a obra corresponde ao mundo artificial de objetos relativamente duráveis elaborado pelo homem cujo fim é estabilizar a vida humana. Ela visa a responder à condição humana da mundanidade. E ela caracteriza-se por ser uma atividade orientada pela categoria de meios e fins. A obra consiste na atividade de fabricar bens duráveis mediante um processo sujeito a regras (de produção) em que há início e fim preestabelecidos. Para tanto, o indivíduo viola a natureza com o propósito de transformá-la, ou, ainda, de adequá-la de maneira a atender ao fim (uso) a que se destinará, isto é, à utilidade para a qual o produto da fabricação foi projetado (excepcionada a obra de arte). Caracteriza-se, então, por ser um processo e, como tal, é previsível, predeterminado e reversível, pois visa à produção de um objeto predefinido. Seu local é o isolamento.

A ação, por sua vez, corresponde à pluralidade dos homens enquanto seres humanos distintos, singulares. A ação constitui a atividade política por excelência, uma vez que “ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria”4. Considerando que a ação ocorre entre os indivíduos e somente entre eles, a ação de um insere-se na teia de relações dos demais junto a qual sua ação torna-se ilimitada, imprevisível e irreversível. Com efeito, ela também é instantânea, evanescente, razão pela qual não raras vezes é causa de desconforto aos agentes devido à impossibilidade de controlá-la. A sua característica mais perceptível é a fragilidade e dela decorrem as características anteriores. Em razão de sua natureza preponderantemente política, a ação acontece entre os homens e de forma espontânea, livre e sem fim predeterminado, diferentemente do processo relativo à atividade da obra. Por meio das palavras e da ação, os homens distinguem-se (singularizam-se) e ingressam em um espaço compartilhado e plural. E, ao contrário das atividades do trabalho e da obra, a ação não sujeita-se às necessidades, tampouco à utilidade. Nessa perspectiva, a ação é considerada fútil e incondicionada, como fim em si mesmo, e sem a preocupação de deixar algo durável atrás de si. Ao agir na pluralidade humana e ao imprimir sua singularidade ao fazê-lo, o indivíduo torna-se cidadão, com potencialidade para atingir o imprevisível, o improvável e o inesperado, a ação é a atividade mediante a qual o indivíduo tem a possibilidade de tornar-se único, singular na pluralidade. Ela é a razão de ser da política, por meio da qual o indivíduo, após liberado do trabalho e da obra, está apto a ingressar no espaço público e político enquanto cidadão e ser humano que responsabiliza-se como habitante da Terra.

No Brasil, atualmente, o cidadão que pretende exercer um de seus direitos políticos, e no caso, uma das forma de ação política, a de candidatar-se cargo público eletivo (cargo político), está obrigado a cumprir a condição constitucional de filiação partidária. Independentemente do cargo, seja em relação ao Poder Executivo, seja em relação ao Legislativo, em qualquer das Esferas Federativas, condiciona o artigo 14, §3º, V, da Constituição da República Federativa do Brasil5, a associação do candidato a algum partido político.6 Isto é, o Sistema Eleitoral Brasileiro atual veda a possibilidade da "candidatura avulsa", também denominada de "candidatura independente", por meio da qual se admitiria a hipótese de o cidadão concorrer a um cargo eletivo independentemente de filiação a um partido político7. Essa obrigatoriedade equivale a uma condição de elegibilidade8 e é assim denominada pela Constituição Federal. Essa condição de elegibilidade passou a ser exigida no Brasil em 19459, com a edição do Decreto-lei nº 7.586, denominado Lei Agamenon10. A norma editada previu, em seu artigo 39, a obrigatoriedade11 de registro do candidato em partido ou coligação como condição de elegibilidade.12 Desde então, o Sistema Eleitoral Brasileiro concede aos partidos políticos o que se denomina de “monopólio da candidatura”13.

Uma vez condicionado o direito do cidadão de pleitear e ocupar um cargo eletivo ao dever de filiação a um legenda, a norma constitucional parece impor-lhe uma considerável restrição à liberdade política e à ação. Ao ter de optar pelo partido a que deverá se filiar, é esperado que o faça em relação àquele cujo programa e diretrizes o satisfaçam integralmente, ou, ainda, o que melhor preencha suas expectativas. Não obstante, é possível conceber a hipótese em que o cidadão se encontre em verdadeiro conflito quanto a determinados temas, sobre os quais somente ante a casuística permitir-se-ia deliberar. Dessa forma, a obrigatoriedade de filiação partidária, e por conseguinte, a sujeição às regras do Estatuto e às resoluções da cúpula do partido ao qual necessariamente se filiou o candidato, e as penalidades a que se sujeita ao não fazê-lo, conduzem-no, ou, ainda, têm a potencialidade de conduzi-lo, à ação política em termos da categoria de meios e fins. Nesse contexto, a exigência de adoção e de manutenção de posição pré-concebida sobre determinados temas e projetos políticos, e de atuação de forma a levá-los a cabo, desconsiderando a conjuntura e variáveis eventualmente envolvidas, podem conferir à ação características que se assemelham àquelas circunscritas à atividade da obra: próximo a um processo de produção/fabricação.

A substituição da ação pela fabricação constituiu uma das preocupações de Arendt e suas reflexões a respeito encontraram espaço no item 31, do capítulo V. Segundo Arendt, a Idade Moderna não foi a “primeira a denunciar a ociosa inutilidade da ação e do discurso, em particular, e da política, em geral”14. Nela, desde cedo, a preocupação em relação à necessidade de “produtos tangíveis e lucros demonstráveis e, mais tarde, a obsessão pela sociabilidade, já se faziam presentes. O receio quanto ao que denomina Arendt de “a tripla frustração da ação”15 é tão antigo quanto a escrita e, segundo a autora, compõem-se de: “a imprevisibilidade dos resultados”; “a irreversibilidade do processo”; e “o anonimato dos autores”16. A imprevisibilidade dos resultados da ação consiste no fato de que simplesmente ela não tem fim previsível. Não é possível ao agente prever com certa precisão o resultado e o término de uma ação. O processo pode perdurar por tempo indeterminado. Os homens sempre souberam dessa impossibilidade, destaca Arendt, pois “aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo; que sempre vem a ser 'culpado' de consequências que jamais pretendeu ou previu.”17

A irreversibilidade do processo relativo à ação equivale à “incapacidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia”18, entende a autora. Ademais, a ação não pode ser restringida de modo confiável a dois parceiros, razão pela qual a ação é considerada também ilimitada. O agente, ao se movimentar entre os demais, ele “nunca é simples agente, mas sempre, e ao mesmo tempo, padecente”19, em termo arendtianos, “fazer e padecer são como as faces opostas da mesma moeda”20. Assim, a ação acontece em um meio em que uma ação converte-se em uma reação em cadeia entre os homens e jamais se “passa em círculo fechado”21, pois “todo processo é causa de um novo processo”22. Assim, os homens são incapazes de prever os motivos e as consequências de um ato, e sequer de desfazer e de controlar com segurança qualquer dos processos que desencadeiam mediante a ação23.

A busca de uma maneira de substituir a ação, na tentativa de salvar os assuntos humanos da acidentalidade e da irresponsabilidade inerente à pluralidade dos agentes, sempre ocupou tanto os homens de ação quanto os pensadores, afirma Arendt24. As soluções propostas no decorrer da História sempre implicavam investidas contra os resultados da ação. Havia, então, a demanda de uma atividade que fosse realizada isoladamente e pela qual o homem se mantivesse "senhor" dos seus atos do início ao fim. E essa busca por substituir a ação pela fabricação é observada em argumentos contra a democracia e, embora aparentemente razoáveis e consistentes, transformam-se “em argumentos contra os elementos essências da política”25. Afinal, as "calamidades da ação" são resultantes da condição humana da pluralidade. Sustenta Arendt:

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A fuga da fragilidade dos assuntos humanos para a solidez da quietude e da ordem tem sido realmente tão recomendada que a maior parte da filosofia política, desde Platão, poderia facilmente ser interpretada com uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política.26

E, com efeito, na medida em que se condiciona o direito do cidadão de pleitear e de ocupar um cargo eletivo ao dever de filiar-se a uma legenda, impõe-se-lhe uma certa limitação em relação a sua ação futura na esfera política. Ao limitá-la, pois ele está obrigado a agir segundo o Estatuto e as decisões adotadas pelo grupo, estabelece-se um horizonte de possibilidades de ação, naturalmente previsível, além do qual ele está passível de sofrer penalidades pela legenda. Dessa forma, a obrigação de adoção e de manutenção de posição pré-concebida sobre determinados temas e projetos políticos, e de atuação de forma a levá-los a cabo, fazem do agente um meio a ser adequado à utilidade e aos propósitos da legenda. Nesse sentido, a atuação do agente coincide com a obediência de regras e, consequentemente, com a execução de ordens visando a atingir a um fim, ou melhor, praticar uma ideia preestabelecida segundo os ideais do grupo. Assim, a obrigatoriedade de filiação partidária, por conseguinte, a sujeição às regras do Estatuto e às resoluções da cúpula do partido ao qual necessariamente se filiou o candidato, e as penalidades27 a que se sujeita ao não fazê-lo, constituem um processo que conduz à estabilização do corpo político, resultado direto das condições a que o agente foi submetido do início ao fim. A ação perde a natureza de fim em si mesma em substituição à categoria de meios e fins, de maneira a atingir e a manter um objetivo predeterminado que pode transcender o tempo daqueles o instituíram. A ação, dessa forma, perde o caráter subjetivo decorrente da singularidade do agente, assumindo o aspecto objetivo, correspondente à ideia ou ao modelo identificado pelo partido como necessário para satisfação de seu fim.

Porém, para Arendt, a ação é a atividade que confere a possibilidade de o indivíduo tornar-se singular, inserindo-se no mundo humano: uma espécie de “segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples de nosso aparecimento físico original.”28 Escreveu Arendt: agir, de forma geral, “significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”) imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere)."29 E, nesse sentido, é próprio do início que se comece algo novo, em relação ao que nada havia ocorrido anteriormente. É pela ação, além do falar, que os homens revelam suas “identidades pessoais únicas”30 – sua singularidade. Todavia, sem o desvelamento do agente no ato, isto é, sem revelar sua identidade única, sua singularidade, segundo Arendt:

a ação perde seu caráter específico e torna-se um feito como outro qualquer. Na verdade passa a ser apenas um meio de atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de produzir um objeto. Isso ocorre sempre que se perde o estar junto dos homens, isto é, quando as pessoas são meramente “prós” ou “contra” as outras, como acontece, por exemplo, na guerra moderna, quando os homens entram em ação e empregam meios violentos para alcançar determinados objetivos em proveito de seu lado e contra o inimigo.31

Para a autora, então, a ação destituída de um nome, de um “quem”, perde o seu sentido.32 Diferentemente das obras de arte que independem de seu autor após adentrar no mundo de coisas, pois conservam em si sua relevância, as ações jamais prescindem de seus agentes. Nesse sentido, é determinante o caráter de “revelação” do sujeito da ação, sem o qual não somente a ação mas também o discurso “perderiam toda a relevância humana”33. O agir, enquanto modo de inserção no mundo humano, não é imposto pela necessidade (diferentemente do trabalho), tampouco pela utilidade (no caso da obra). E, embora possa ser motivada por outros, em cuja companhia se deseja estar “nunca é condicionada por eles”34, entende Arendt.

Um dos "remédios" sugeridos por Arendt para a fragilidade da ação consiste na faculdade de fazer promessa. A promessa possibilita, ao menos em parte, dissipar a imprevisibilidade das ações. Arendt a equipara à figura de “ilhas de previsibilidade”, em meio à natural impossibilidade de conhecer previamente o futuro decorrente das ações humanas. Entretanto, ela destaca que se as

promessas perdem seu caráter de isoladas ilhas de certeza em um oceano de incertezas, ou seja, quando se abusa dessa faculdade para abarcar todo o terreno do futuro e traçar caminhos seguros em todas as direções, as promessas perdem seu poder vinculante e todo empreendimento acaba por se autossuprimir.35

Dessa forma, diferentemente do poder da faculdade da promessa, que corresponde à existência da liberdade do ser humano, em uma condição de não soberania, a obrigatoriedade de filiação partidária como condição de elegibilidade, parece constituir-se em um instituto baseado na dominação do partido sobre os filiados, ou seja, no governo de outros. E, por conseguinte, os corpos políticos que a adotam, assentam-se sobre a soberania36, a qual consiste no “ideal da inflexível autossuficiência e autodomínio” e “contradiz a própria condição da pluralidade.”37 Se, segundo entende Arendt, “a soberania é, no domínio da ação e dos assuntos humanos, o que a maestria é no domínio da fabricação e no mundo das coisas, a principal diferença entre ambas é que a primeira só pode ser alcançada pela união de muitos, enquanto a segunda só é concebida no isolamento”.38 A ação do homem sujeito às determinações de uma legenda não parece ser diferente, pois embora exposta ao espaço da aparência, não é capaz de estabelecer um domínio público autônomo, pois ele não aparece qua homem.39 Neste caso, é inegável que o sujeito “vive na presença e na companhia de outros”, mas, segundo a autora, “esse estar junto [togetherness] não possui nenhum dos traços característicos da verdadeira pluralidade.”40 Assemelha-se antes ao trabalho, em que há “a perda efetiva de toda a consciência da individualidade e da identidade”41, do que propriamente a ação, mediante a qual o indivíduo singularizar-se-ia ao aparecer aos demais. Essa condição de elegibilidade parece ter como fundamento a uniformidade42, com ênfase no isolamento do grupo para o estabelecimento de seus fins, e não a verdadeira pluralidade.

Nesse sentido, a possibilidade de surgimento de um sistema político utópico, cuja elaboração é possível segundo um modelo determinado por alguém que mantivesse o domínio das técnicas dos assuntos humanos, passa a ser algo quase natural. E foi Platão (427 a.c – 347 a.c) o primeiro a fazê-lo, ao “desenhar uma planta para a construção de corpos políticos”43 e cuja iniciativa inspirou “todas as utopias posteriores”44, afirmou Arendt. Platão, e, em menor medida, Aristóteles, foram quem inicialmente propuseram “que as questões políticas fossem tratadas, e os corpos políticos governados, à maneira da fabricação.”45 Conforme se observa, a substituição da ação e, consequentemente, a degradação da política em um meio para atingir um fim supostamente superior, não é menos antiga que a tradição da Filosofia Política.46 Contudo, essa instrumentalização da ação, com a resultante degradação da política na categoria de meios e fins, não foi suficiente para eliminar de fato a ação, tampouco para destruir por completo o domínio dos assuntos humanos. Contudo, ao mencionar a transformação da ação em uma modalidade da fabricação, destaca Arendt que

somos, talvez, a primeira geração a adquirir plena consciência das consequências mortíferas inerentes a uma linha de pensamento que nos força a admitir que todos os meios, desde que sejam eficazes, são admissíveis e justificados para alcançar alguma coisa que se definiu como um fim.47

As “calamidades (fatalidades/frustrações) da ação” decorrem da condição humana da pluralidade. Porém, eliminá-la, implicaria suprimir o domínio público (a exemplo do ocorreu no Nazismo, em especial em seu início: 1930-1934). A solução mais perceptível contra os “perigos” da pluralidade pressupõe a adoção de um governo de um só homem, à espécie de uma monarquia. Entre outras possibilidades, parte-se de uma tirania explícita até “aquelas formas de democracias nas quais a maioria constitui um corpo coletivo, de sorte que o povo passa a ser “muitos em um só” e arvora-se em “monarca”4849 (como ocorreu no Fascismo Italiano, no qual o "fascio", feixo representa união e força)50.

Com efeito, o que caracteriza essas tentativa de fuga das fragilidades dos assuntos humanos e, por conseguinte, uma fuga da política, é o conceito de governo. Isto é, “a noção de que os homens só podem viver juntos, de maneira legítima e política, quando alguns têm direito de comandar e os demais são forçados a obedecer.”51 Essa hipótese, a substituição da ação pelo governo, aparece fundamentalmente em O político, escrito por Platão, descreve Arendt. Nele, o autor instaura um abismo ao propor uma solução ao problema relativo à fragilidade da ação, que consistia em garantir que o iniciador se mantivesse senhor absoluto de seus atos, dispensando auxílio de outros para levá-los a cabo. A proposta de Platão resultou no estabelecimento de dois modos de ação, que para os gregos eram interconectados: archein e prattein (“começar” e “realizar”). Nesse caso, esses modos assumem a significação de duas atividades distintas. Na primeira, “o iniciador passa a ser um governante (um archon, na dupla acepção da palavra), que ‘não precisa em absoluto agir (prattein), mas governa (archein) aqueles que são capazes de executar’.”52 Nessa perspectiva, “a ação, como tal, é inteiramente eliminada, e passa a ser a mera ‘execução de ordens’5354, de sorte que saber o que fazer e fazê-lo tornam-se dois desempenhos inteiramente diferentes. Essa divisão entre os que sabem e não agem e os que agem e não sabem também foi inicialmente estabelecida por Platão em lugar da antiga articulação da ação enquanto começo e realização. Platão concluiu, dessa forma, segundo os termos de Arendt, que esse domínio isolado em relação à ação só poderia ser

alcançado quando os outros são usados na execução de ordens, quando já não é necessário que adiram por iniciativa própria ao empreendimento, com seus próprios objetivos e motivações, e quando, por outro lado, aquele que tomou a iniciativa não se permite qualquer envolvimento na própria ação.55

Assim, ainda que os cidadãos mantivessem alguma participação nos assuntos humanos, segundo Arendt, todos ‘agiriam’, na verdade, como um só homem, inclusive sem ter possibilidade de dissenção interna, [...] por meio do governo, ‘os muitos se tornam um, em todos os aspectos’56, exceto na aparência corporal.”57 E, muito embora o conceito de governo tenha se originado em ambiente doméstico e familiar, ele exerceu uma função determinante na organização dos assuntos públicos e, por sua vez, encontra-se inseparável da política. E, mais uma vez, foi Platão quem promoveu a substituição da ação pelo governo e o fez “mediante uma interpretação ainda mais plausível em termos de produção e fabricação.”58 E, para tal, extraiu de sua Filosofia a palavra-chave, o termo “ideia”, do domínio da fabricação (marcenaria), ao concluir a divisão “saber” e “executar”, tão alheia à atividade da ação e tão próxima à experiência da fabricação: um processo pelo qual primeiramente “percebe-se a imagem ou forma (eidos) do produto que se vai fabricar; logo organiza-se os meios e dá-se início à execução.59

Nessa perspectiva, é possível concluir provisoriamente que a substituição da ação pela fabricação, ou, ainda, o exercício da ação em termos de produção/fabricação passa a ser algo quase natural em nosso sistema político. A imposição de filiação partidária como condição para a candidatura a cargo público eletivo acaba por conduzir o indivíduo a agir segundo a categoria de meios e fins, à imagem de um espaço público construído, de um objeto fabricado60. Uma vez que os modelos de ação e as ideias para consolidá-los estão preestabelecidos, cabe ao cidadão apenas filiar-se àquela legenda com a qual se identifica e sujeitar-se as suas regras ao pretender exercer um cargo público eletivo, que é uma forma de ação política. E é nesse sentido que a preocupação de Arendt acerca de “pensar o que estamos fazendo”61 mantém-se sempre presente e é de suma importância. Afinal, observa Schio que “ao pensamento cabe despertar o indivíduo de uma sobrevivência mecânica, levando-o a questionar seu contexto em busca de compreensão e de sentido.”62 E não só pensar, mas falar acerca dos acontecimentos. Com efeito, afirma Arendt “tudo que os homens fazem, sabem e experimentam só tem sentido na medida em que se possa falar sobre”63, sob pena de a ação tornar-se vazia e sem sentido.

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Sobre o autor
Gabriel Bezerra da Silva

Procurador do Município de Tramandaí/RS. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gabriel Bezerra. Condição de elegibilidade: potencialidade para substituição da ação pela fabricação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7506, 19 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108085. Acesso em: 27 abr. 2024.

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